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Pequenos heróis
| Foto: Bigstock

Quem não tem, em suas boas memórias, alguma figura de joelho ralado, de dedão estropiado, e roupa suja de lama? De alguém encardido com a bola embaixo do braço, ou o carrinho de rolimã, sempre pronto a largá-los para subir no pé alcançar uma fruta, e nos bolsos uns objetos sem valor, ou umas minhocas, umas casas de caramujo, umas cascas de cigarra? Hoje em dia, infelizmente, são tantos os discursos, como as muitas luzes dos tablets e dos celulares, a ofuscar realidades que foram sempre óbvias e basilares, que é preciso algum esforço para enxergá-las. É preciso reafirmar que a grama é verde e que o céu é azul, e é preciso relembrar, também, que meninos e meninas são diferentes — ainda que mais de uma senhora que me lê tenha já levantado as sobrancelhas, pronta para dizer como era “moleca”, pois, com sua exceção, vem apenas confirmar minha regra. E a falta de diferenciação entre meninos e meninas logo se reflete na homogeneização de homens e mulheres. Poderíamos tratar dos problemas e sofrimentos que esse processo acarreta para cada um dos sexos, mas, nesta ocasião, gostaria de tratar do que sofrem os meninos e os homens. É permitido dizer que vivemos, culturalmente, em meio a uma crise da masculinidade.

Muitos dos perigos que nossos filhos enfrentam no contexto da cultura contemporânea são relativamente fáceis de reconhecer: o incentivo à sexualização precoce, a pornografia, a desvalorização da interioridade, o culto do imediato, da aparência, todo o relativismo moral. Mas há uma armadilha menos ostensiva e, por isso, ainda mais perigosa para os nossos garotos. Espalhadas em quase todas as mídias, tanto na ficção como na maneira de selecionar e interpretar as notícias, vemos caricaturas grotescas das qualidades especificamente masculinas e dos dons singulares dos homens. Vemos apenas o seu exagero, seu excesso, ou seja, nada mais que a sua subversão, que passa a ser tomada como sua natureza, como se fosse a sua forma saudável — o homem violento, o dominador, ou o conquistador barato, o folgado, egoísta, em suma, o “machista”. Essas imagens, carregadas de um sentido deturpado, de tão repetidas começam a integrar camadas menos conscientes das pessoas, e especialmente das novas gerações, que passam a desprezar ou ignorar a importância das contribuições tipicamente masculinas e a rejeitar a sua força. E assim tem origem algo que podemos chamar de uma “educação emasculadora” dos meninos, que não os permite crescerem como homens, muito menos tornarem-se pais.

É uma maneira de educar, por exemplo, que não deixa os meninos darem vazão a toda a energia corporal que vibra dentro deles, à expansão e até ao pouco de algazarra que sua natureza pede; que não os permite imaginarem a guerra, a disputa, o desafio, e tudo aquilo que envolva algo de violência. Não permite que eles distingam vilões — nem que nomeiem heróis, e nem salvem princesas. Esses impulsos, às vezes tão fortes, são sufocados e punidos em prol de uma ordem e de um silêncio perpétuo, que deveria reinar, por exemplo, nas salas de aula, e essas imaginações, que vêm de um lugar tão profundo no coração dos meninos, são acachapadas por uma necessidade de buscar sempre o acordo, a paz, por uma espécie de “consciência cívica” tragicamente deslocada.

E assim tem origem algo que podemos chamar de uma “educação emasculadora” dos meninos, que não os permite crescerem como homens, muito menos tornarem-se pais

Eu creio que nos caiba, atualmente, recuperar um pensamento mais claro acerca da educação dos meninos, que, sendo diferentes das meninas, merecem também uma educação diferente da delas (e vice-versa). Devemos considerar a formação deles como os seres sexuados que são, quero dizer, a formação da sua personalidade tem de levar em conta que são homens, varões, e tudo o que isso acarreta. É óbvio que isso não significa — o que seria exatamente cair na subversão e na caricatura, como mencionei há pouco — que devemos educar os meninos para que sejam briguentos, violentos, malcriados, para que não saibam se concentrar, nem buscar acordos e almejar a paz — isso seria exatamente não os educar. Trata-se, sim, de que a educação moral dos meninos passa pela sua masculinidade: a sua educação integral atravessa, para transcendê-lo, o seu ser pessoal sexuado, e é esse sentido transcendente que devemos focar para ter êxito.

Ora, todo menino e todo homem quer, no fundo, de algum modo, ir para a batalha como um cavaleiro de armadura, pronto para derrotar o antagonista maligno por uma causa nobre e justa e, enfim, ter como prêmio, não tanto os louros da glória, mas o amor da princesa prometida. A luta do bem contra o mal é a grande batalha, a mais emocionante de todas — e não só materialmente, no mundo exterior, mas também dentro de nós, no reino espiritual. O coração masculino foi feito para esses combates, e os meninos começam cedo a desejá-los. Eles são feitos para verem as coisas desse modo, como tarefas, ao passo que nós, mulheres, somos mais naturalmente inclinadas às pessoas e às sutilezas das relações. Se tirarmos do homem a “tarefa” que lhe é própria, ou seu trabalho, a sua saída em busca de algo, esse seu senso de missão — se ele não tiver territórios para subjugar, castelos a construir, batalhas a vencer — tiramos-lhe parte de quem ele é, ou pior, faremos algo muito inferior daquilo que ele estava destinado a ser. Uma educação que obrigue os meninos a ficarem sempre quietos, sempre doces, comportados e limpinhos, como as meninas, que abafa ou mesmo pune todos os seus ímpetos de meninos, corre o risco de matar neles a parte que lhes daria um verdadeiro propósito e uma missão na vida.

Afinal, o que é um homem que, em vez de dar a própria vida pela donzela, ou, deveríamos dizer, pela esposa e pela família, pelos irmãos, vizinhos, pela pátria, enfim, pelo próximo, se apressa em salvar a própria pele? Quem é esse homem que, de maneira egoísta, usa aquilo com que a natureza o dotou — sua força, seu engenho, sua versatilidade e resistência — apenas em benefício próprio, e abusa dessas vantagens sobre os indefesos? Esse é justamente o covarde, a caricatura do homem — é nada mais do que o menino que não foi educado para ser um homem. E uma mulher encarregada de educar meninos deve, ao contrário, ver neles os pais que serão, os líderes de outros homens ou os cooperadores fiéis, e essa é a grande marca da educação dos meninos: devemos criar nossos filhos para que sejam homens que protegem as mulheres, e que jamais se aproveitem da vantagem física que têm para agredi-las e colocá-las em risco. Mas não conseguiremos inspirar neles esse nobre chamado para serem protetores e provedores se lhes dissermos que eles são em tudo iguais às suas irmãs...

Trata-se, sim, de que a educação moral dos meninos passa pela sua masculinidade: a sua educação integral atravessa, para transcendê-lo, o seu ser pessoal sexuado, e é esse sentido transcendente que devemos focar para ter êxito

Esse desejo de vencer pelo bem e de salvar a donzela em perigo deve ser cultivado, porque ele é o embrião espiritual do amor ao próximo, da dedicação e da entrega ao outro. Esse desejo intuitivo de se dispor com prontidão ao sacrifício pelo próximo, principalmente pelas mulheres e pelos indefesos, que nos pequenos é expresso de maneira caótica, agitada, desastrada, não deve ser sufocado: deve ser lapidado. Devemos encorajar a postura heróica nesses cenários fantásticos com que eles sonham — como falamos outro dia —, mesmo que o nosso herói vença fingindo socar o vilão na cara de uma maneira um pouco violenta, ou que o encha de tiros... enfim, de uma maneira que, à primeira vista, nos pareça um pouco grotesca demais, porque o que importa é o sentido, e não a aparência, que mudará logo. Não haverá problema em os meninos se divertirem com uma luta de espadas, ou fingirem que estão duelando, ou usando armas de brinquedo, em brincarem de polícia e ladrão, ou de matar dragões, em sonharem que vão entrar para o exército para “acabar com as pessoas más”; ao contrário, tudo isso será moralmente benéfico se for cultivado com um sentido sobrenatural.

É preciso ressaltar também que, nesse contexto, o papel do pai é fundamental, pois é necessário que um outro homem mostre aos meninos o caminho da masculinidade. Quando os pais são ausentes de suas vidas, o que é infelizmente comum hoje em dia, vemos como ficam perdidos nesse sentido, o que se comprova numa porção de estatísticas, e por isso é muito bom que outra figura paterna assuma esse posto. Afirmar isso não inclui uma crítica nem um julgamento das mães solteiras ou de pessoas que vivem outras situações difíceis, mas o contrário: é um compadecimento com a sua dificuldade, com sua missão extraordinária de dar àquela criança o que somente um pai pode dar. E que é, em síntese, a ligação da criança com o mundo, com o mundo lá fora: é o dimensionamento e o sentido que tem, na vida real, daquilo que é aprendido com a mãe na segurança do lar — e isso, para os meninos, como se pode deduzir, é ainda mais fundamental.

Mas, essa educação que emascula, e essa espécie de “difamação cultural” da masculinidade (e, em geral, da natureza dos sexos), além de fazer com que muitos pais abandonem sua responsabilidade ou que os lares se desfaçam, gera também uma grande confusão na cabeça daqueles que ainda desejam, apesar de tudo, ser bons pais. Qual é exatamente seu papel? O que ele deve fazer, ou não fazer? Até que ponto deve se envolver em determinadas questões?... Como princípio, é bom ter claro que os comportamentos paternos e maternos não foram inventados por ninguém, mas são um produto razoável da própria natureza humana, e se originam, em grande parte, das necessidades e exigências igualmente naturais que os filhos solicitam. Por isso é conveniente que os homens mantenham os seus traços masculinos característicos: seus modos de agir mais sistemáticos, mais diretos, ordenadores, concretos, e até mais “ásperos”, como uma barba por fazer. O seu jeito de dar uma ordem, ou de repreender, e o seu jeito de elogiar e reforçar uma atitude boa, tudo isso é muito diferente de como a mãe faz. O seu jeito de amar é outro, e também será outro o seu jeito de educar, complementar ao da mãe, como tudo na família. E, explorando essas capacidades afetivas que lhe são próprias, o pai representará, e de fato será, para os filhos, o símbolo e a presença de elementos fundamentais: o limite, o incentivo, o ideal, a força. E para os garotos será, de tudo isso, também um modelo a ser imitado.

Afinal, o que é um homem que, em vez de dar a própria vida pela donzela, ou, deveríamos dizer, pela esposa e pela família, pelos irmãos, vizinhos, pela pátria, enfim, pelo próximo, se apressa em salvar a própria pele?

Quando digo que devemos não apenas tornar a reconhecer que “garotos são sempre garotos”, mas permitir e incentivar que ajam como tais — repito —, não quero nem de longe significar com isso a sua deturpação, como se dizer que “menino é assim mesmo” significasse que eles vão falar palavrões, brincar sem respeito com coisas nojentas e ofensivas, ser insensíveis com os outros e com as meninas, vão se masturbar, assistir pornografia, e depois ter relações antes do casamento. Também não me refiro, como já disse, ao que algumas feministas imaginam: a permitir aos meninos comportamentos que os transformarão em homens maus, folgados, opressores, maridos violentos ou abusadores. Simplesmente porque aquilo não é ser verdadeiramente menino, tampouco isso é ser verdadeiramente homem. Ao dizer que os garotos vão agir e brincar como garotos, e assim receber uma educação própria a essa sua condição, tenho em mente que nós vamos instrui-los nas virtudes masculinas, e não nos defeitos, e vamos ajudá-los a se fortalecer nesses aspectos: ajudando-os a serem disciplinados e perseverantes; incentivando-os e os apoiando a sempre honrarem com seus compromissos, e a serem leais à sua palavra, para que ela jamais perca o seu valor — e, ao contrário, nunca mentindo, mesmo em prejuízo próprio, para amarem sempre a verdade acima de tudo. Vamos orientá-los a proteger e a defender os mais fracos, os injustiçados, e também aqueles que estiverem sob os seus cuidados, como seus irmãos, irmãs, ou amigos, de modo a sempre dispor de sua força, física e intelectual, a serviço dos outros, pelo bem dos outros, e jamais permitindo, ao contrário, que pervertam suas habilidades, físicas, intelectuais e sociais, para cometer injustiças e maldades, ou para conseguir vantagens para si e para apenas o próprio deleite; educando-os para que não se preocupem com o que os outros disserem quando estiverem fazendo aquilo que sabem ser o correto, sacrificando o seu orgulho ou até a sua reputação pelo bem de verdade. Se os ensinarmos assim, a serem piedosos, tementes à verdade, e trabalhadores em prol do bem, faremos frutificar as suas virtudes masculinas, essas potencialidades que estão na alma dos garotos. Não serão homens emasculados, cuja força foi neutralizada, e muito menos homens perversos, que usam seus ímpetos viris para o mal ou em prol de si mesmos. Teremos criado, enfim, pequenos heróis, homens de verdade.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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