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A felicidade é uma carroça velha puxada por um pangaré numa rua esburacada
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(À maneira de um conto de Natal, SQN)

Carroca_Poty

Quando eu era uma pequena versão de mim mesmo e morava em uma pequena rua de uma então ainda pequena Curitiba, tinha um amigo que, apesar de também criança, trabalhava ajudando o irmão mais velho dele a transportar lenha com uma carroça. Isso implicava, é claro, em também ajudar a carregar e a descarregar a madeira. Um trabalho puxado para uma criança. Mas nós, os amiguinhos que jogávamos bola enquanto ele trabalhava, sentíamos um pingo de inveja quando tínhamos de parar o jogo para ele e o irmão passarem com a carroça pela rua que nos servia de estádio (hoje se diz Arena). Para nós, que não esfolávamos as mãos, não rasgávamos as calças e as camisas nem dormíamos com dor por causa do esforço, aquilo de ficar andando de carroça mais parecia uma aventura.

Por vezes, pegávamos carona na rabeira da carroça que passava, para breves deslocamentos. Uma vez, por alguma razão, o irmão dele não estava junto e Chico passou ele mesmo pilotando aquele bólido puxado por uma magnífica égua que não teria feito feio nos mais refinados jockeys clubs ingleses (era como eu fantasiava sobre a esquálida criatura). Ele me convidou para subir e, em vez de ir na rabeira, me aboletei no “cockpit”, para acompanhá-lo em uma entrega.

No meio do caminho de uma rua deserta, ele se empolgou e foi exigindo mais velocidade do puro sangue que nos puxava. Gritava “Vai! Vai!” e batia com as rédeas no lombo marrom do animal. Sentíamo-nos em Monza ou Interlagos, mais felizes do que pinto no lixo. Velocidade total e só faltava a narração do garoto do “taca-le pau!” para dar mais emoção. A carroça corcoveava ao passar pelos buracos da rua de terra e nós tínhamos de nos segurar no banco para não sermos expelidos daquela Ferrari de madeira. Gargalhávamos de felicidade.

Fomos assim pela eternidade de uns dois ou três quarteirões até chegarmos ao local da entrega, uma pacata padaria, que naquele tempo era enorme, com seu forno a lenha, que distribuía pães para toda a região. Porém, ao pararmos e olharmos para trás, vimos que a movimentação da carroça, aos socos, tinha feito mais da metade da carga cair pelo caminho.

Tivemos de voltar e buscar toda a lenha espalhada pelo chão, colocar de novo na carroça e depois descarregar tudo. Ali eu aprendi que o trabalho dele era muito mais duro e dolorido do que eu imaginava, mas isso não me impediu de continuar com aquela pontinha de inveja de alguém que tinha uma carroça para, além de trabalhar, se divertir, mesmo com algumas dores pelo corpo no fim do dia. Claro que é só porque eu não fazia isso todo dia.

Triste é que, depois que o irmão dele ficou sabendo da nossa “aventura”, deixou até de dar carona na rabeira, quando nos encontrava. Depois veio o progresso, asfaltaram a rua, eles venderam a égua e compraram um pequeno caminhãozinho e a vida nunca mais foi tão feliz quanto naquelas breves duas ou três quadras.

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