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As guitarras, os discos e as histórias de André Christovam
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A reportagem sobre André Christovam foi publicada nesta terça-feira, no Caderno G da Gazeta do Povo e aqui vai na sua versão integral, sem cortes:

André Rodrigues/Gazeta do Povo
André Christovam: obra novamente ao alcance do público

Há 11 anos, em um 25 de abril outonal em Porto Alegre, o guitarrista brasileiro André Christovam subia ao palco com seu ídolo Hubert Sumlin, o lendário guitarrista da banda de Howlin’ Wolf. No ensaio anterior, passando as músicas, o americano tinha se mostrado um tanto tímido e tocado tão baixo que toda a banda também se viu obrigada a baixar o som dos instrumentos. Christovam lembra de como foi o início do show:

— Ficamos um pouco preocupados, pois ele parecia distante, na dele. Eu falei para o Fábio (Zaganin, baixista, que junto com o baterista Mario Fabre formavam a banda de apoio) para ficarmos tranquilos, começar com calma que o show iria engrenar. Subimos ao palco e, na primeira música, o Hubert colocou o amplificador dele no 10 (volume máximo). Nossos instrumentos soaram baixo e então todo mundo teve de pôr o volume também no máximo. Ficou um som alto pra caralho. Na terceira música eu já estava rouco. Mas foi muito bom.

Agora, 11 anos depois, aquele show que havia sido gravado ao vivo por Renato Alscher foi mixado por Sandro Esteban e masterizado por Walter Lima e finalmente chega ao público. Faz parte de um pacote de cinco discos que devem ser lançados por Christovam até o final do ano. Até aqui, além do “Live in POA”, também foram relançados “Mandinga”, “The 2120 Sessions” e “Banzo”. Todos estavam fora de catálogo, foram remasterizados e relançados pelo novo selo paulistano Substancial Music.

Também deve sair mais um inédito, de um show com o guitarrista Taj Mahal, no Heineken Concerts, gravado em 2000, no Bourbon Street, em São Paulo. Deve vir com um pacote CD e DVD, ainda sem data prevista. E ainda devem ser relançados “Touch of Glass” (1990) e “ Catarse (1996).

Os discos

Mandinga é a estreia em disco do guitarrista, lançado em 1988, e foi talvez o álbum de blues mais vendido no Brasil em todos os tempos. Nesse relançamento tem um versão especial, como “bonus track” da música “Legítimo Pedaço de Cristo”, com interpretação de Lenine.

Em The 2120 Sessions, de 1991, Christovam reuniu em torno dele, em sessões de gravação no estúdio que da nome ao disco, em Chicago, Jerry Porter (bateria) e J. W. Williams (baixo e vocal) que eram a “cozinha” da banda de Buddy Guy, além de B.B. Odon nos vocais.

Banzo é o preferido do guitarrista e marcou uma mudança na carreira. O guitarrista adiciona influências de jazz e música brasileira à pegada blues. Adota novas sonoridades com andamentos diferentes. O disco saiu em 2002 e é considerado pelo autor como seu ponto máximo como compositor e instrumentista. Para quem estranhou a guinada do trabalho, ele lembra que seu primeiro instrumento foi o violão clássico, que aprendeu harmonia com Hamilton Godoy e que frequentou a Faculdade Paulista de Arte onde estudou regência.

Live in POA

O lançamento de André Christovam Trio Live en POA with Hubert Sumlin e os relançamentos fizeram o guitarrista brasileiro voltar aos shows pelo país. Ele agora é acompanhado por Izal de Oliveira (baixo) e Caio Dohogne (bateria).

O disco marca um repertório de clássicos, principalmente do disco The London Howlin’ Wolf Sessions, que foi o disco que fez André se interessar pelo blues, principalmente pelo jeito que Hubert Sumlin tocava a guitarra. “As primeiras músicas que eu tirei foram dele”, revela o bluesman brasileiro, completando o elogio: “O Hubert inventou tudo o que se precisa saber para tocar blues, todos os riffs são dele”. O disco vem com uma arte gráfica inspirada na Trade Mark of Quality, famosos e disputados discos piratas dos anos 70.

Voltando a Porto Alegre, no Natu Blues Festival de 2002, o show foi tão energético que uma fila de guitarristas se formou para subir ao palco. E Coco Montoya, Candido Serra e Solomon Fishbone se integraram na verdadeira “jam session” em que tudo se transformou. “E teve uma hora que a Big Time Sarah (cantora que já tinha feito o show dela) apareceu no palco de roupão e pantufa e também cantou”, lembra André Christovam que, além de excelente guitarrista e compositor, é também um ótimo contador de histórias.

As histórias de um bluesman

Quase tão bom quanto ouvir um disco de André Cristovam é ouvir suas histórias. Sem a verve e a descontração de uma conversa com o guitarrista, tento aqui reproduzir algumas:

** Na Pompeia – André morava em uma pequena vila na Pompeia, em São Paulo, e tinha como vizinhos próximos, de infância, Luiz Sérgio Carlini (guitarrista e compositor das bandas Tutti Fruti, que tocava com Rita Lee, e Camisa de Vênus, além de ter tocado com outros grandes nomes da música brasileira) e dos irmãos Sérgio e Arnaldo, que na adolescência, junto com Rita Lee, formaram a banda Mutantes.

** A inspiração – Em 1974, André estudava violão clássico e regência, quando, vitorioso em uma aposta, ganhou como prêmio o disco “The London Howlin’ Wolf Sessions”. Por causa desse disco e mais precisamente do jeito que Hubert Sumlin tocava nele, decidiu tocar blues na guitarra.

** A guitarra – Com a morte do pai, foi para Los Angeles, estudar no Guitar Institute. Lá, pela sua paixão e alguma coincidência ficou responsável por todas a as gigs (apresentações) de blues da turma. Logo que chegou, foi morar com um casal, mas achou melhor mudar (“o cara era um armário e a mulher me dava mole”, lembra). Dividiu um apartamento com um músico negro, o que não era comum nos EUA de então. Por isso, ficou admirado por todos os negros da escola e soube tirar proveito dos conhecimentos deles.

** Orgulho de pai – Em uma folga da escola, foi para a casa de um dos colegas negros, filho de um militar de alta patente e pode ouvir um diálogo com o pai dizendo para o filho o quanto estava orgulhoso dele estudar música e seguir a linhagem dos melhores músicos negros americanos. Quando o pai apontou para a coleção de discos a que estava se referindo, o filho gritou “essas merdas são do André, os meus estão ali” e apontou para uma coleção de metal branco com Scorpions na primeira fila.

** Ano Novo – Voltando dos EUA para ficar com a mãe em um fim de ano. No dia 31 de dezembro, viu que ela estava cozinhava muita comida, bem mais do que seria o suficiente para os dois, que estavam sozinhos em casa. Perguntou se viria alguém e ela respondeu: “sempre vem alguém”. Ao sair do banho, ouviu a campainha e pensou que algum parente poderia ter aparecido. Mas era o vizinho Sérgio Dias (o músico, dos Mutantes), trazendo junto com ele André Geraissati, exímio violonista. Christovam imita o sotaque paulistano de Dias, falando com sua mãe; “será que tem um pouco de comida, é que a gente ficou sozinho e não tem pra onde ir a essa hora”. Na casa havia uma só guitarra, que ficou passando de mão em mão, cada músico afinando de seu jeito e mostrando algumas músicas um para o outro em um rodízio que só parou na manhã do dia primeiro. Imagino como teria sido esse encontro de três músicos geniais.

** Tocando calipso – No show com Taj Mahal, o americano foi passar o som e, após algum tempo, pediu para tocarem um calipso. Tocaram. Exigiu que a música tivesse os arranjos escritos. Eles escreveram na hora os arranjos para cada instrumento. Mahal perguntou se a banda costumava tocar muitos calipsos e ouviu como resposta que aquela havia sido a primeira vez na vida que eles estavam tocando um calipso. O americano saiu de forma ríspida e passou a discutir fortemente com seu agente. Cristovam ficou preocupado e pensou que ele não tinha gostado da banda. Depois, o americano explicou que há tempos tentava tocar o calipso com a banda dele próprio e ninguém conseguia e que aqueles brasileiros haviam tocado de primeira e de uma forma linda.

** Na limusine – Nos shows pelo Brasil, Hubert Sumlin não cansava de elogiar Christovam e banda e queria tocar com eles no exterior. Mas o guitarrista americano foi operado de câncer logo depois e o contato foi temporariamente rompido. Um dia, Christovam conta que recebeu um telefonema e era Hubert falando com um estranho eco ao fundo do telefonema. Depois de avisar que já estava melhor, voltou a convidar os brasileiros para tocarem com ele no Japão e avisou que faria um show naquela noite no Garden. “Eu não me liguei que bar era aquele do Garden, então perguntei se era um bar novo, que eu não conhecia. Ele falou que era no Madinson Square Garden, o tradicional local de Nova York e que o show seria com os Rolling Stones e que, na verdade, estava falando do telefone da limusine do Keith Richards”. Assim como Christovam, o guitarrista dos Stones e Eric Clapton também são grandes fãs de Sumlin, que viria a morrer logo depois, sem fazer o programado show com os brasileiros no Japão.

Serviço:
Os discos Mandinga, The 2120 Session, Live in POA with Hubert Sumlin e Banzo, de André Christovam saíram pela Substancial Music e custam R$ 29,90 (cada). Blues.

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