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Cilene Tanaka vê A Queda
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Já disse aqui que tenho orgulho de ter leitores inteligentes e generosos. Pois mais um me enviou um texto para compartilhar com vocês. Desta vez foi Cilene Tanaka. Ela escreveu uma crítica sobre a peça A Queda, um monólogo do ator Mauro Zanatta, baseado no romance de Albert Camus.

Antes do texto crítico, reproduzo também aqui o e-mail que ela me enviou e que também diz um pouco sobre os interesses dela. Aí vão os dois, primeiro o bilhete, depois o texto crítico:

Olá Luiz!

Tenho acompanhado seus escritos na Gazeta do Povo e percebo seu interesse pelo Paraná. Isto temos em comum porque há já dois anos dedico minha atenção especialmente à literatura e teatro paranaenses. Acredito, como Hegel, na arte como um termômetro da sociedade. Mas se o termômetro não for olhado, ninguém sabe o tamanho da febre, não é?

Percebo um crescimento na cena experimental paranaense que é significativo. Credito isto principalmente ao Núcleo de Dramaturgia de Curitiba do qual faço parte. Infelizmente, meu provincianismo é dos bons e acabo olhando, na maioria das vezes, só para Curitiba porque, como a maioria dos curitibanos, não conheço o resto do Estado. E é tentando remediar minha ignorância, para ajudar o Estado a olhar para si e para sua história (seja ela antiga ou contemporânea) que te escrevo.

Tenho percebido que, fora alguns comentários da Helena Carnieri, não há canal de crítica teatral em Curitiba. E a crítica tem importância bilateral: ajuda o crítico a olhar e o artista a repensar.

Sei que sua área de interesse é essencialmente a música, mas vi que publicou uma resenha alguns dias atrás. Isto mostra que teu interesse é por arte em geral e sua paixão é essencialmente música. E concordo contigo também neste ponto, e estou aqui só pedindo uma força para encontrar um caminho de divulgação das resenhas que tenho escrito sobre espetáculos que vejo.

Ontem (quinta-feira) assisti à estréia de “A Queda”, monólogo de Mauro Zanatta dirigido por Flavio Stein. Escrevi uma resenha que tenho enviado a todos os canais que conheço para tentar girar a roldana, que mencionei parecer-me parada.

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A Queda

Flavio Stein
O ator Mauro Zanatta

Mini-Guaíra. Sobre o palco há outro palco quadrado pequeno. Microfone sobre o meta-palco e uma luz projetando um retângulo branco ao fundo. Entra um senhor vestindo paletó branco de linho, gravata branca divertida com losangos pretos, calça verde musgo e sapatos pretos bem polidos. Os losangos contradizem o resto com sua alegria, tornando-se, eles também, tristes no decorrer da peça. E é na contradição que a riqueza deste espetáculo surge.

Não é teatro experimental. Ao menos não como gênero porque todo teatro acaba experimentando. É teatro como vida, como experiência de troca entre seres humanos. Como comunicação transcendental entre seres que têm ao menos algo em comum: neste caso, a morte. E é partindo da morte que este texto passa a pensar a vida. E pensando a vida conclui que Deus já não preenche o buraco da existência.

A personagem viu um suicídio. Mas se me ocorrer que ela é um defunto-autor, desculpe-me: os verbos no passado podem me deixar na dúvida: “Eu era um advogado. Eu já fui muito rico”. Ela, ele, ela. Personagem, suicida, suicida. Já não sei se a personagem está viva, se a personagem é a suicida ou se a personagem se suicidou. E isso não importa porque o que a personagem é é humana.

Ele não olha a platéia ao entrar. Brinca paciente e literalmente com o nome do espetáculo tendo por fundo uma música de circo. E logo começa a falar, parando somente uma hora e vinte depois.

Há uma luz insistente no meio da platéia que acho ter sido esquecida. Mas quando me lembro que Zanatta vem dum teatro de tradição em que a platéia é tão importante quanto o ator, percebo que deve ser de propósito: nem no teatro podemos nos livrar da culpa – enfrentá-la-emos com luz acesa.

Ele começa falando de si: fala de seus vícios e virtudes, confessa suas culpas. Ele é Mauro Zanatta, Albert Camus e João Batista Clemente, a seu dispor. E enquanto fala, olha para a platéia atento aos pontos em que partilham sua humanidade. Percebe a infinita afinidade das culpas e, calculadamente, diz: “Eu sou o último”. Em seguida: “Nós somos os últimos”.

O microfone era usado a cada vez que ele queria nos sussurar, como o diabo, alguma verdade aos ouvidos. O vermelho aparecia quando a ponte onde ocorreu o suicídio era referenciada: uma memória recalcada?

Quando se dirige aos inteligentes é mais difícil porque não pode só aplicar o método, tem de explicá-lo pormenorizadamente. Mas ao fim sempre aparece o que se é, porque a aparência é a manifestação adequada da essência. E Mauro aparece a cada palavra. E nós aparecemos ao final. É um espetáculo horrível. E como poderia ser outra coisa o espetáculo de minha solidão?

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