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Literatela – quando a literatura é lida na tela
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Tem paciência para ler textos longos? Se você se interessa por literatura e/ou tecnologia, eu recomendo o texto abaixo. Até mesmo porque fui eu que escrevi e saiu publicado neste sábado, no caderno G Ideias, da Gazeta do Povo. Este é o texto original. (Aqui está o texto editado).

Literatela – a literatura na tela

Ricardo Medeiros / Gazeta do Povo
Banhista usa um leitor digital na beira do mar, com o sol a pino e os pés na água

Há quatro anos e meio escrevi um artigo, publicado no jornal literário Rascunho, sobre a relação entre a literatura e a internet. Fazia um exercício de futurismo sobre o encontro entre a velha arte literária e a nova mídia. Chamei esta aproximação de linkteratura, uma reunião das palavras link – e quem agora não sabe o que é isso? – com literatura. Também pode ser chamada de literanet ou literaweb, ou ainda simplesmente literatela (literascreen) que seria toda a literatura lida em uma tela (de computador, iPad, telefone, e-reader etc).

Na época em que esse artigo foi publicado, ainda não existiam os leitores de livros digitais, estas maquininhas como o Kindle, da Amazon, ou o Alfa, da Positivo e tantos outros que surgiram. Principalmente não existia o iPad, da Apple, este tablete eletrônico que começa a se popularizar em países mais tecnologicamente avançados. Pois foi o surgimento desses aparelhinhos que me fazem agora “reciclar” aquele artigo e novamente pensar nas possibilidades do encontro da literatura com a tela do computador ou do telefone. É um novo exercício de futurologia, um pensar sobre uma nova forma de apresentação literária. Não, não vou dizer em momento algum que os livros em papel estão condenados à morte. Apenas quero apresentar possibilidades, algumas delas já sendo testadas.

Quem se interessa o mínimo por tecnologia pode pular este parágrafo e ir direto ao próximo. Os leitores de livros digitais são pequenos equipamentos eletrônicos mais ou menos do tamanho de um livro comum, que pesa como um livro comum e tem uma tecnologia chamada de tinta digital, que permite a leitura sobre tela fosca, não brilhante, e o armazenamento de centenas de livros digitais. Funciona assim, você compra o aparelho (não dá para falar em preço exato, mas varia entre R$ 500 a R$ 1 mil), entra na loja virtual da livraria na internet e compra um livro digital que baixa no aparelho para ler quando quiser. Já o iPad é semelhante nas proporções, um pouco maior e mais pesado, mas diferente na proposta. Permite a navegação pela internet como um microcomputador e, por isso, a tela é brilhante. Também permite baixar e ler livros, jornais e revistas nele. E aqui vai uma interessante comparação entre o livro, o e-reader e o iPad que você pode ver pelo computador: http://bit.ly/9SSCzd.

E agora?

A questão principal é: como a literatura poderá integrar-se a essa nova realidade, sem abandonar o que tem de melhor, ou seja a capacidade criativa e imaginativa que só ela confere à palavra escrita? Se fosse apenas um caso de transposição para som e imagem, não haveria problema: o cinema e a televisão já fazem isso e serão também integrados ao computador. Mas, mantendo o foco da criação sobre a palavra escrita, como interagir com o computador e a internet utilizando-se das possibilidades tecnológicas que são oferecidas?

O jornalista Nick Bilton, do New York Times, é um especialista em novas tecnologias e se considera um futurologista. Ele acaba de lançar nos Estados Unidos o livro “I live in the future & Here’s how to work” (Crown, 293 páginas, US$ 25 – você pode ler um trecho no seguinte endereço: (http://scr.bi/9OlE6Z).

Como era de esperar para o caso dele, o livro pode ser lido também pelo computador ou por um smartphone e a cada capítulo há um conteúdo extra – que não tem no livro impresso – para alguma dessas plataformas. Na introdução do livro ele conta que amava ler jornais, que aprendeu a acompanhar ainda na escola. Porém mudou os hábitos e há alguns anos não lê mais nem jornais nem livros em papel. Tudo o que ele lê tem a intermediação de uma tela, seja no computador, no smartphone, em um iPad ou em um leitor digital. Explicando o último capítulo do livro ele diz o seguinte:

“Finally, I will show you how the whole experience of consuming news, magazines, books, music, and other media is changing, and how the best morsels of information will stand apart from the voluminous clutter. This is the part where the old meets the new: Great storytelling, incisive reporting, and thoughtful editing will still prevail — but they will need to be presented to you and me in a different form to go beyond mere information.”

Concordo com ele quando diz que grandes histórias, reportagens incisivas e edições elaboradas continuarão prevalecendo, mas “mas terão de ser apresentados a você e a mim de uma forma diferente para ir além de mera informação”. É disto que procuro tratar aqui e um personagem como Nick Bilton é fundamental para termos em mente enquanto lemos este artigo. É alguém do futuro e o futuro já está aí.

O encontro da Literatura com a internet

De certa maneira já se faz muita literatura na internet, seja com os blogs, ou em sites específicos, ou mesmo no interjornalismo (expressão que eu prefiro à de jornalismo on-line ou de web jornalismo, que são mais comuns, mas que não abrangem tudo o que o jornalismo pode fazer com a evolução tecnológica e a internet). A palavra escrita está saindo dos livros e indo para a tela do computador ou telefone. Uma mesma história literária pode conviver nos dois meios, pacificamente, mas respeitando suas características próprias.

Já temos muitos livros e textos literários disponíveis na internet, sejam pagos ou gratuitos. Basta acessar a página própria e mediante alguns comandos e, por vezes, alguma forma de pagamento, baixá-los. Editoras virtuais também existem, montando o livro na hora para o cliente que escolhe o texto em um menu próprio.

Portanto, o livro, ou a literatura e o computador já estão bem familiarizados. Mas há ainda um ou mais pontos a serem aproveitados pensando-se em texto para ser lido em telas – e, talvez, com acesso à internet. Isso já vem sendo bastante estudado, particularmente na esfera do jornalismo que trata, principalmente, do hipertexto. Notícias ou palavras-chave que se transformam em caminhos para outras notícias com outras palavras-chave, num caminhar em busca de informações correlacionadas. As palavras-chaves também podem nos transportar para ilustrações ou vídeos, ou sonoras sobre o assunto levantado na reportagem.

Desde a chegada do iPad, porém, a forma de apresentação do jornalismo vem se transformando mais ainda. Há outras possibilidades. O leitor, ou o usuário da informação (e de anúncios publicitários também), seja lá como o chamaremos daqui para a frente, decide se quer que as ilustrações se mexam, se a fotografia se amplie ou se o vídeo seja acessado. Na internet, pelo YouTube, há alguns exemplos do que já está acontecendo. Exemplos como o da revista Wired (http://bit.ly/9sEXlP) e, ainda mais radical, da revista Viv ( http://vimeo.com/10207926 ).

A literatura vai, aos poucos, se apropriando desse conceito jornalístico no seu novo fazer literário, usando as armas da informação jornalística na ficção, na imaginação. O hipertexto e as possibilidades interativas das telas de computador podem ser o início de uma nova forma de fazer literário. Isso pode ser feito, como já disse, sem prejudicar o livro em si. Uma mesma história, seja ela um romance, uma novela ou um conto, ou uma peça teatral, pode ser escrita para o livro de uma maneira e para a “literatela” de outro. Quem preferir pode até seguir, na tela, a mesma ordem de páginas do livro, mas pode, também ter outras escolhas de caminho, que o leitor pode modificar a cada leitura.

Há várias maneiras de se oferecer a “literatela” e vários podem ser seus fornecedores. Um livro de um autor pode ter um site específico ou o próprio autor pode ter seu sítio na internet onde ofereça seus textos. Ou ainda, uma empresa, seja uma editora ou um portal pode manter um serviço de “linkteratura” onde ofereça trabalhos de diversos autores. O que importa é que o texto estará disponível para consulta e download via internet e pode ser pago ou gratuito, dependendo do interesse do autor ou do empreendimento.

Quando o autor termina seu trabalho literário, ele passa (ou deveria passar) pelas mãos e cérebros de editores especializados que sugerem alguma mudança, cortes ou acréscimos, fazem correções, dão dicas, que podem ou não ser aceitas, mas, no final das contas o livro é editado. Se for um romance ou novela, ou uma peça teatral, geralmente o leitor, se não desistir no meio do caminho, percorre o texto da primeira à última página. Se for um livro de contos, poesias ou crônicas, o leitor pode escolher qual trabalho vai ler primeiro e não precisa, necessariamente, seguir a ordem da numeração das páginas. Ao pensar em um texto literário para a “literatela” deve-se repensar essa linearidade da leitura. Ela deve ser oferecida como mais uma das alternativas, mas a história pode ter outro tipo de leitura, mais parecida com a oferecida pelos contos ou crônicas, em que o leitor sente-se mais à vontade para escolher o seu próprio caminho. Além da leitura linear, da primeira à última página de forma seqüencial, há o hipertexto, a palavra-chave, que pode fazer o leitor se desviar por algum caminho que ele prefira. Assim, dependendo da escolha, o “linkleitor” poderá entrar em histórias paralelas, ou retornar a um texto passado ou obter um resumo de um determinado personagem bastando para isso um clique sobre essa(s) palavra(s)-chave. Ou ainda, um autor faz uma série de livros sobre determinado personagem e num desses livros refere-se a um episódio de um outro livro que pode ser acionado – o livro todo ou um resumo – com um clique.

É evidente que os editores e o autor devem estar atentos para o que fazem e não cometer equívocos que comprometeriam a leitura integral da obra. Seria ridículo, por exemplo, com um clique na primeira página revelar-se todo o segredo de uma trama que só seria desvendada nas páginas finais. Seria impensável fazer o leitor se perder pelo caminho e não conseguir mais achar o ponto de partida ou a forma de reiniciar a leitura do ponto inicial ou de onde ele queira (para evitar isso existem os menus de cena ou capítulos como acontece nos DVDs).

O futuro já chegou

A criação, paginação e edição da “literatela” têm que ser pensadas para a leitura em computador, internet, e-readers, ipads e ipods da vida. Deve-se ter em mente a arquitetura da construção tecnológica e todas as suas possibilidades. Nada impede, por exemplo, que em um determinado momento haja uma ilustração, que pode ser animada e com som. Esse é um passo mais à frente e então já começamos a falar na literatura feita especificamente para o computador e não mais para o livro impresso. Mas é uma possibilidade, mais que isso, é o futuro que já chegou.

O escritor japonês Ryu Murakami lançou o livro “A Singing Whale” exclusivamente para iPad, iPhone e iPod Touch – o que significa venda exclusiva na loja da Apple, a iTunes. A história sobre baleias jubarte que cantam juntas num estilo parecido com o canto gregoriano, descobertas no Havaí, se passa em 2022 e o livro tem ilustrações animadas, além de música do compositor japonês Ryuichi Sakamoto.

O clássico “Alice no País das Maravilhas” também ganhou uma versão especial para o iPad. Uma versão animada. Melhor do que explicar, é você poder clicar em http://bit.ly/9QLYk5 para ter uma ideia melhor.
Ah, as crianças vão adorar esta nova possibilidade. Há outros exemplos de livro infantil, como este Grimm’s Rumpelstiltskin for iPad que você pode dar uma olhada lá no YouTube: http://bit.ly/c1FDlU

Problemas que permanecem

Também há problemas que permanecem em qualquer uma das formas. A Apple, que representa a vanguarda tecnológica, é muito conservadora em questões morais. O livro Ulisses, clássico escrito por James Joyce no início do século passado e que chegou a ser proibido na Inglaterra quando do seu lançamento, por causa das cenas mais picantes, sofreu neste ano mais um episódio de censura, em tempos de iPad. Um desenvolvedor criou um aplicativo (um programa de computador especial para o tablet) que apresentava o livro em versão de quadrinhos, chamado Ulysses Seen. A Apple, depois de aprovar o aplicativo o proibiu porque mostrava cenas de nudez. Só depois de canceladas estas cenas é que o aplicativo foi novamente colocado à disposição do público. Você pode ver na internet no seguinte endereço: http://www.ulyssesseen.com .

A “literatela” encontrará sua forma própria. E será de grande ajuda sempre que um autor colocar no seu texto um trecho de música (pense que alegria ler Alta fidelidade, de Nick Hornby podendo, a um clique, escutar as músicas que fazem parte das listas dos personagens) ou uma referência a um lugar (que tal um passeio com Leopold Bloom pelos locais descritos em Ulisses, de Joyce?), ou a menção a um outro autor (as obras filosóficas se transformariam em verdadeiras enciclopédias), ou ainda referências a obras de arte (características e detalhes de uma pintura e seu autor, ou passeios virtuais a museus).

Democraticamente, estará à disposição de autores venerados e inseridos no cânone da crítica e também daqueles que não ganham boas apreciações críticas, mas em contrapartida, são adorados pelos leitores (pense nas possibilidades em livros como O código DaVinci ou Harry Potter).

As objeções

É claro que a objeção mais fácil de se fazer é que ainda não inventaram nada mais prático do que o livro para se ler. Concordo. No entanto já não falo mais em apenas ler, mas também em ver, ouvir e, mais à frente – quem sabe quando? -, em cheirar, tatear, lamber.

Outra objeção – que aceito, assim como também aceito a evolução inevitável – é que não há nada mais criativo e cativante que a literatura tradicional. Por mais explícito que seja o escritor, tudo é montado na mente do leitor e na sua capacidade de imaginação numa espécie de jogo que o aproxima muito de ser também um criador na hora em que lê. É um sentimento diferente do cinema ou do teatro em que pouco sobra para ser completado pela imaginação de quem assiste (televisão, então, nem se fala). Nesse sentido, a literatura é mais próxima da música, por mais paradoxal que seja – em que se despertam sentimentos sem que haja a necessidade da palavra.

A literatura depende e é bastante auxiliada pela intuição e imaginação de quem recebe, quase tanto quanto de quem a produz. Já o cinema ou o teatro seriam formas de recepção mais passivas – e aqui eu falo da representação teatral e da projeção do filme, pois as duas artes também têm suas versões impressas, sejam nos textos das peças ou nos roteiros dos filmes, aí então comparadas à literatura tradicional, apesar das suas especificações de signos, pois são escritos – isso quando não adaptados de textos puramente literários – para serem montados em um outro tipo de linguagem. É claro que falo na média “hollywoodiana” e em peças teatrais mais comerciais pois sem dúvida há filmes e representações que exigem mais do expectador do que um livro de um leitor.

A “literatela” poderia vir a ser também uma forma mais passiva, pois é mais explícita ao mostrar ao alcance de um clique coisas que poderiam ser imaginadas. Ela ficaria mais informativa e menos imaginativa. Pode ser, mas quem disse que cinema e teatro são menos arte ou artes menores? A “literatela” também não o será quando encontrar seu caminho e afastar-se mais da literatura tradicional.

Ainda quanto às objeções acima, pode-se alegar que é desconfortável ler textos longos em um computador. Pode ser, mas para uma geração de crianças que cresce em frente a essa maquininha, é a coisa mais normal do mundo. Talvez seja mais fácil para eles ler algo em um computador do que em um livro. Há também que se considerar que inúmeras pessoas, sejam executivos, professores, intelectuais, jornalistas e até mesmo escritores já passamos mais tempo em frente a um computador do que em frente a um livro. Significa que, querendo ou não, já lemos muita coisa nas telinhas, talvez até mais do que em veículos impressos.

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Estou com a sensação de que tem alguém me seguindo: twitter.com/sobretudo

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