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Manifesto Teatrofágico
| Foto:
Daniel Castellano
Teatro Guaíra em Curitiba

Prefácio: A Profecia

Meu Paraná solitário, e eu, somos filhos de Darios e Emilianos que nunca vemos, a não ser no centro de Curitiba.
Passava uma mulher, muito triste, carregando flores e uma vela. Ela homenageava a vida na morte de alguém. Mas ela não seguia um cortejo. Ela não seguia um caixão. Ela seguia o lampejo de uma revolução. Aconteceu o acontecido: Dario caiu lá, duro. Sempre imaginei que ele caía na São Francisco. O chão de paralelepípedo velho. Uma morte em homenagem aos tropeiros que, sem saber, criavam uma nação invisível. Nem o sotaque é só nosso. Acham que somos gaúchos, como todos os do sul.

Ele caía, num dia chuvoso, e muita gente vinha curiosa. A região frequentada pelas putas e por trabalhadores pobres, ás vezes, recebe Darios bem vestidos. Mas chamar o centro velho de “região” soa acadêmico: aquilo é “lugar”; “centro velho” é terminologia de intelectualidade barata, daquela importada da capital (não do Estado, do Brasil) que os velhinhos usam na academia paranaense de letras: lançando livros em latim como se este fosse o limite da intelectualidade. E na época, algumas crianças ainda brincavam naquelas ruas. Dario sente-se mal. Dario não consegue responder. Encosta-se na parede do número 1392. Dario cai lá, babando. Somem suas coisas. Aos pouquinhos, como some a vida que há nele.

Alguém poderia dizer que as pessoas tiraram-lhe o último fiapo humano, quando lhe tiraram a aliança que do dedo só saía com sabonete. Ninguém ajuda muito mais do que colocando o seu próprio terno sob a cabeça já mole. Ninguém ajuda muito mais que isso. Ninguém lhe rouba muito mais do que um relógio. Ninguém lhe reverencia com muito mais do que uma vela. Ele não é muita coisa. Não merece muito cortejo. Não recebe muita graça e homenagem, porque não tem muitos amigos. Além de tudo é arrogante. Ou será tímido? Ninguém sabe muito bem, até porque agora já está lá morto. Na São Francisco. Uma das ruas mais vivas de Curitiba. Não foi feriado, a morte de Dario. Não era ele mestre, iluminado, professor, profeta, rei ou catedrático. Na verdade, se houve morte do autor, o autor corporificado seria Dario; porque leitor ele não era. Não parecia sê-lo, ao menos. Não este Dario.

Mas o fato é que ela estava lá. Esta mulher, inteirinha. Triste como a morte faz. Solene como o cortejo existe. Ela celebrava a liberação do fardo da vida. Ela celebrava a morte sentida. De uma cidade de gente viva que, morta, anda por aí. Ela viu Dario morrer. E com Dario, todo o corpo curitibano. Ela, toda simbologia, viu na morte de Dario a morte paranaense. Quando um homem morre, conhecemos o que sentir. O que conhecer quando um Estado morre? Ela desesperou-se. Exasperou-se. Não sabia o que fazer. Usou exclamações mil. Mentalmente fez os cálculos sentimentais mais sinceros. Mas nenhuma pinta de alma sentida. Não sabia o que fazer num caso daqueles. A quem recorrer quando o que morre não é um homem, mas toda uma Cidade, todo um Estado?

Havia ainda a questão de se ela também estava morta. Sendo paranaense, natural isto seria. Mas não era curitibana, então mais natural era que morresse menos. Mas por via das dúvidas…não havia dúvidas, na verdade. Perguntou ao Dario da banquinha de jornal: “Moço, eu tô viva?”. Ao que Dario secundou com um sorriso. Ela insistiu e perguntou: “Mas e o senhor? Tá vivo?”. Claro que ele estava. Mas ele não estava. E ela não precisou de muito mais reflexão para perceber que qualquer dos Dario que passava estava inconsciente de sua própria morte. Não adiantava continuar as indagações. Era fato. Mas então como decidir se ela estava viva? Não conseguia resolver a questão, decidindo então acreditar. Era fato. Agora estava viva. E para confirmar o fato e viver seu luto, resolveu fazer todo o ritual: preparou uma oração; uma vela; dois lírios e se vestiu de negro. Não passou maquiagem, porque ficar muito bonita na morte não lhe parecia bem. Não colocou saltos, para caminhar com tranquilidade em meio ao provável pranto. Sem chapéu, para não exagerar o decoro que só funciona em filmes. Sem véu, que adoraria usar, caso fosse mais rica. Sem luvas para não correr o risco de queimá-las com a vela.

E, como o que não usa determina o que é, usou um vestido não muito justo, para não realçar as formas recém-delineadas pela dieta. Como não dizer já é dizer algo, torceu em silêncio para que não houvesse calor: não queria torrar ao sol e era clima chuvoso o que Dario merecia. Pegou o ônibus. Pagou a passagem ao indiferente Dario. Refletiu sobre a dificuldade de um motorista dirigir, lembrar o itinerário, cobrar a passagem, parar no lugar correto, não furar o sinal, sorrir e dar boa tarde. Sentou-se, pois não era hora de movimento.

Em pleno carnaval, ela achou que seu cortejo solo não seria atrapalhado pelo trança-trança da Rua XV. E riu-se da idéia de enterrar aquele corpo coletivo embaixo do Paço da Liberdade: a ironia pode causar o riso quando representar um excesso de realidade.

Trinta e oito anos depois, exuma-se o cadáver. O Dario que não é José porque fica no Sul. Caveira de gesso que você encontra na endossa em várias cores diferentes. Sua estética é do frio e não necessariamente da frieza. Sua objetividade é abstrata porque varia muito. O Estado é resumido aos Curitibanos que, ignorantes das outras cidades, confiam serem os únicos aqui. O sotaque é variado e a formação foi casual. É planejada em forma de tabuleiro de xadrez e seu bolsão de pobreza joga mesmo é futebol. Atraiu muita gente durante um governo aí, mas agora já tem muito trânsito. Tem a Rua XV que só não chama mais atenção que o tubo de ônibus.

Seu Dario reclama que às seis da tarde é um inferno, mas o Estado insiste em fazer propaganda dizendo que é bom. E seu Dario insiste mas, dos males o menor, ruim mesmo é São Paulo. Já no teatro a coisa é diferente: tem um monte de companhia que ninguém conhece e só vai no Lala quem não gosta do teatro de verdade. Mas o teatro de verdade não é assistido pelas pessoas de verdade então fica tudo meio mentiroso – no mínimo, inverossímil. Mas quem precisa de verossimilhança quando o transhumano é a verdade? Pior: quando não há verdade, o que o teatro tem a buscar? E a característica de Curitiba, de novo, é a negatividade. O não-saber é o que nos constitui: não sabemos qual sotaque usar em cena; não sabemos o que é feito no resto do Estado; não sabemos o que é o teatro paranaense (nem a música, nem a TV (veja: Nem a TV!) nem o romance, nem a dança); não sabemos quem ganha o gralha azul; nem que, por pouco, a gralha não era anta; não sabemos qual o ritmo de cena; o texto peculiar; a atuação ridícula; o diretor bom; a marcação determinante; a iluminação próspera.

Sabemos que o negócio é sair daqui, apesar de Curitiba crescer vertiginosamente. E nem usamos muito esta palavra porque ela é muito grande para nós. Somos retraídos até no vocabulário. E nos contentamos com pouco. Muito pouco. Quantidade e qualidade. Sempre é pouco, mas sempre é. Os espetáculos medianos já são aplaudidos em pé porque…antes isso que nada. E sequer conhecemos o nada. O absoluto.

Qualquer excesso já nos faria bem. Uma lufada de enxofre ou um balde d´água pelando. Em terra de cego. Mas não somos cegos, estamos enterrados. Somos vampiros?
Nosso mundo é confortável sendo passagem dos maiores. Mundinho, mundão. E quem não gostar que se mude. Mudemos, portanto. Mudemos esta coisa. Olhemos verdadeiramente e megalomaníacamente.

Sintamos a protuberância. Vivamos a essência e a superfície, desde que larguemos o ar blazê. Ou construamos o ar blazê com potência rotunda. Ou rotundemos as odes ao nada. Façamos o folclore do maracatu com vontade e vejamos o ridículo da contradição aceitando-o. Não neguemos a essência porque senão ela se desfaz. Ou a neguemos porque ela nos incomoda ao ponto de tirar a respiração. Façamos o legítimo, o inteiro. Não façamos no intervalo do trabalho o que esperamos ser uma obra-prima. Não apresentemos um espetáculo não concluído como fosse resultado de muito esforço. Não sejamos muito cautelosos com o que dizemos a nós mesmos: nossa comiseração e temor não nos levam. Não nos fazem caminhar.

Ode à Pilhéria ou Pilhéria da Ode

Como um pintor escolhe as cores de sua tela, escolho as cores das palavras que aqui pretendo expor. Não sendo pintor,o poeta é um colorador das palavras, um escolhedor, acolhedor, texturizador de palavras. Resta assegurar que o fato de o poeta não ser pintor não necessariamente invalida a metáfora porque, forçosamente, o poeta é um pintor. Forçosamente, poeta e pintor e ator e qualquer fazedor é artista.

Para dar o tom do que será publicado aqui; para acolher a revolta e/ou disposição dos visitantes; para localizar os poetas e não poetas, os políticos, apolíticos, críticos, místicos e até os filósofos, este blog tem as cores vermelha e preta e amarela e azul. Nenhuma cor mais. Como é possível nos localizarmos diante destas restritas opções?

Vou tentar peripécias astutas (ou não) para dizer o que quero e o que não quero. As vezes, se olhar bem, vai achar um elogio como coadjuvante do que parece ser pilhéria ou ofensa. Quem disse que a fala não tem harmonia? Olha bem pra mim. Olha aqui. Aqui ó. Este ponto final não veio à toa, vai passar o final de semana; vai terminar com a namorada pra ficar comigo. Aquele parágrafo não tá errado, não faz sentido mesmo.

Tentar resenhar além do espetáculo, o momento, que é sempre meu e do artista. As vezes vou me contradizer, mas me respeito por isso. E trato os outros como trato a mim: as vezes bem, as vezes não, mas me amo e amo os outros. Não devo me sentar com ar arrogante procurando defeito na peça. Talvez num dia de mau-humor, mas geralmente não sou assim. Mas sempre espero mais, sempre espero que seja a peça da minha vida, meu Godot chegando reluzente, meu grande encontro, meu grande dia, meu desejo corporificado.

Outros vieram antes e, solenemente, dizem, disseram e dirão o que sinto e vejo melhormente que eu mesma. Isto não é bom nem ruim. É citação.

Pedi a Artaud que apresentasse algumas das temáticas deste blog. Ele achou que ficaria bom assim:

“Antes de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura, e que apenas de um modo artificial é que se pretende dirigir para a cultura pensamentos que se voltam unicamente para a fome.

Mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou uma pessoa de ter fome e da preocupação de viver melhor, quanto extrair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da fome

Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e que algo nos faz viver – e aquilo que sai do interior misterioso de nós mesmos não deve perpetuamente voltar sobre nós mesmos numa preocupação grosseiramente digestiva” O teatro e seu duplo- Antonin Artaud

Brecht foi um pouco menos íntimo ao atender ao meu pedido. Isto porque mudei de postura desde que nos conhecemos: não mais creio na arte como ferramenta política, mas como refletor da ferramenta, sua forma e seu mecanismo. Isto porque a arte não cria, descria. Ele ficou meio puto, me chamou de ignorante, e me mandou essa:

“Há um estranhamento do automóvel se, após dirigir um carro moderno por um largo período de tempo, dirigimos um velho Ford-T. Subitamente ouvimos outra vez as explosões; o motor trabalha pelo princípio da explosão. Começamos a sentir-nos espantados que um veículo, na verdade qualquer veículo não movido por tração animal, possa mover-se; em suma, compreendemos agora o automóvel como algo estranho, novo, como uma proeza da pura construção, enfim, precisamente como algo não-natural. A natureza, à qual obviamente o automóvel pertence, subitamente encerra o momento de não naturalidade dentro de si própria, e seu conceito fica, agora, saturado dessa não naturalidade.” XXII, Willet – Bertolt Brecht

Contextualizando Brecht, a metáfora provavelmente trata do valor da arte; isto se não se tratar de culinária indiana; as metáforas as vezes tiram licenças poéticas para fazer coisas inimagináveis: encher a cara, apertar campainha e sair correndo, brincar de esconde-esconde, escrever poemas, fazer palhaçadas, etc.

Não sou Artaud nem Brecht, e dizer quem não sou já diz quem sou. O que sei é também o que sou e o que sei é que Artaud era corajoso: “(…)Sou satã e sou deus e pouco me importa a Virgem Maria”. Eu, diferente de Artaud, escrevo Deus. Às vezes.

Fiquemos combinados que quaisquer perguntas só são passíveis de formulação na medida em que é possível que sejam respondidas. Então a elucubração da temática tem este tom azulado da dúvida. Nesta coloração de mundo (sim, estamos criando aqui outro mundo), perguntemos: o teatro é linguagem?

Sou Virgem, a Maria do encantamento mundano que acalenta um pranto no momento exato da questão – se é que ela tem momento exato. O fato é que se a questão tivesse um momento exato, eu e somente eu o conheceria, já que ao menos o pranto é meu. Meu mundo é universalizável e por isso a pretensão da temporalidade.

Virgem Maria

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