No catolicismo, existem coisas que só um padre pode fazer, como celebrar missa e ouvir confissões. São duas ocasiões absolutamente essenciais na vida de um fiel, que tem a obrigação de assistir à missa dominical e de se confessar pelo menos uma vez por ano (se bem que, na verdade, o ideal é se confessar com muito mais frequência). Fora os outros sacramentos que o sacerdote também pode levar aos fiéis, ainda que não sejam exclusividade sua (um diácono pode, por exemplo, batizar ou ser a testemunha da Igreja em um casamento).
Por isso, ainda mais nesses tempos em que há cada vez menos padres, o fato de um sacerdote dividir seu tempo entre o cuidado pastoral e outras atividades deixa muitos fiéis alarmados. Padre-cantor, padre-palestrante… e padre-cientista também, por que não? Outro dia desses, um bom amigo, católico fiel e também cientista, por ocasião da ordenação de um padre que era químico, mas que dali em diante se dedicaria somente ao sacerdócio, veio comentar comigo que achava muito complicada a situação em que o clérigo mantém “jornada dupla” (na verdade, o termo que ele usou foi “lamentável”). O tempo que um padre passa no laboratório pesquisando, ou na universidade dando aula, é tempo subtraído às coisas que só um sacerdote pode fazer. É uma confissão que ele deixa de ouvir, é uma direção espiritual que ele deixa de dar, é uma missa que ele poderia estar celebrando em algum lugar carente de padres… leigos podem fazer shows, podem dar palestras, podem fazer pesquisa, podem atuar em veículos de comunicação, podem fazer trabalho administrativo, mas não podem substituir os padres naquilo que só um clérigo ordenado é capaz de fazer.
Eu consigo compreender a força desse argumento. Talvez no passado as coisas fossem diferentes. Era uma época em que a proporção entre padres e fiéis era diferente, havia mais sacerdotes e isso podia “liberar” alguns deles para a pesquisa científica, suponho. Sem falar no papel que a Igreja Católica sempre teve na educação; os leigos só tomaram a dianteira nesse campo há pouco tempo, até porque só recentemente se compreendeu melhor o seu papel na Igreja, e antes disso o corpo docente das escolas e faculdades católicas era majoritariamente (quando não exclusivamente) formado por padres. Se voltarmos ainda mais no tempo, a mentalidade clerical era até mais forte, sendo quase que necessário ser ordenado para se ter acesso (ou pelo menos para ter acesso mais fácil) a alguns ambientes, incluindo o da ciência nascente.
Mas e hoje? Para entender um pouco como os padres-cientistas modernos justificam essa “dupla carreira”, conversei por e-mail com dois deles, colegas na mesma faculdade católica, a Seton Hall University. Joseph Laracy é professor no Departamento de Matemática e Ciências da Computação, e sua carreira pré-ordenação inclui trabalhos no MIT e pesquisas com apoio da Nasa. Gerald Buonopane é uma vocação tardia; ordenou-se aos 52 anos, e antes disso obteve um Ph.D. em Ciência dos Alimentos, foi professor universitário na área e trabalhou com regulação de alimentos tanto no setor privado quanto na Food and Drug Administration, mal comparando uma espécie de Anvisa norte-americana. Hoje ele é membro do Departamento de Química e Bioquímica da Seton Hall University.
Ambos celebram missa diária. O padre Laracy também vai a paróquias da Arquidiocese de Newark (em cujo território está localizada a Seton Hall) todos os fins de semana, enquanto o padre Buonopane reza missas diariamente ou na universidade, ou em alguma das duas paróquias que atende. Todo sábado ele celebra em um convento da ordem fundada por Santa Teresa de Calcutá, e quinzenalmente vai a um outro convento celebrar missa para as religiosas enfermas. O padre Laracy também ouve confissões, realiza casamentos e batizados de acordo com a demanda. “Eu estou muito feliz com a maneira como divido meu tempo”, conta. Buonopane foi um pouco mais específico ao falar de sua rotina: disse que estima gastar 20 horas por semana com o atendimento pastoral, e 50 a 60 horas por semana ministrando ou preparando aulas, escrevendo artigos científicos, participando de eventos, enfim, com o lado “científico” da coisa. “Às vezes eu gostaria de passar mais tempo nas atividades próprias do sacerdócio, mas de modo geral estou bem satisfeito com o equilíbrio que tenho entre os dois tipos de tarefas”, afirma.
Uma figura importante em ambos os casos foi a do arcebispo John Joseph Myers. “Tanto ele quanto outros padres da arquidiocese sempre me encorajaram em minha pesquisa científica”, diz o padre Laracy. O padre Buonopane, logo após a sua ordenação, dedicou-se ao trabalho pastoral, mas cinco anos depois começou a sentir o desejo de voltar a lecionar, principalmente no campo da ciência. Ele soube que Myers estava interessado em enviar mais padres à Seton Hall e pleiteou a transferência, decidida pelo arcebispo em 2011.
Laracy responde ao argumento de que a ciência e outras atividades deveriam ser deixadas aos leigos para que os padres possam se dedicar apenas ao que só eles podem fazer alegando que isso é ter uma “visão muito funcional” do sacerdócio. “As pessoas pensam ‘o que é que só o sacerdote faz?’, mas é preciso ter uma perspectiva ontológica. O padre é um discípulo que se configura a Cristo pela graça do sacramento da Ordem e que tem o privilégio de agir in persona Christi. Muitos padres estão envolvidos em tempo integral com o cuidado pastoral, mas o ministério sacerdotal nunca se manteve limitado a isso, sempre cobriu todos os aspectos da ação humana”, explica. “Eu sou padre 24 horas por dia. Na sala de aula ou no altar, estou fazendo o trabalho de Deus. Estou servindo os filhos de Deus. Só com minha presença na Seton Hall eu espero tornar mais evidente a presença de Deus aos outros. Claro que precisamos de bons padres nas paróquias, mas também precisamos de sacerdotes do mundo acadêmico para fortalecer ou renovar a fé dos jovens”, acrescenta Buonopane.
As inspirações de ambos são os grandes padres-cientistas do passado, como Gregor Mendel e Georges Lemaître, mas Laracy e Buonopane acreditam que os padres-cientistas de hoje ainda têm muito a oferecer. “Eles explicam mais sobre o mundo, transformam o desconhecido em conhecido. Conhecer melhor a realidade pela perspectiva das várias ciências nos permite compreender melhor a nossa fé e, assim, podemos ser melhores evangelizadores. Temos de seguir aprendendo todo dia; lembre-se da parábola de Jesus sobre colocar vinho novo em odres velhos. É assim hoje: nessa época de avanços tecnológicos,precisamos fazer o melhor possível para nos manter atualizados”, diz Buonopane. Para Laracy, o grande legado de um padre-cientista hoje é poder dar testemunho do relacionamento íntimo entre fé e razão na tradição intelectual católica, especialmente nesses tempos em que esse aspecto se tornou quase esquecido.
O que os padres Laracy e Buonopane me disseram ajudou a entender a situação pela perspectiva deles, embora eu ainda tenha sérias dúvidas sobre a conveniência de um padre usar boa parte de seu tempo em atividades alheias ao seu ministério pastoral. Talvez os católicos de Newark tenham sorte de haver padres suficientes lá para não ficarem desassistidos mesmo com o trabalho universitário dos sacerdotes-professores da Seton Hall. No fim, a coisa parece ser melhor decidida na base do “caso a caso”. A cientista Stacy Trasancos, autora de Particles of faith, diz que não há uma resposta única à pergunta “padres deveriam também ser cientistas (ou cantores, ou palestrantes)?”. “É uma decisão que não pode ser tomada por outras pessoas, mas pelo padre e seus superiores. Juntos, eles determinam como melhor servir os fiéis. É como perguntar se uma determinada mãe deveria trabalhar fora de casa. Assim como de maneira geral é melhor para as mães estarem em casa com seus filhos, em certas circunstâncias também pode ser bom para uma mãe ter um trabalho externo. É uma decisão que ela toma junto com o marido, considerando o que é melhor para os filhos e a família. A virtude da prudência exige um olhar realista para cada situação, antecipando problemas e prevendo possíveis soluções, estando preparados para ajustes com o passar do tempo”, ela diz, evocando o exemplo do padre Stanley Jaki, um grande nome do diálogo entre ciência e fé. “Ele cumpriu seus deveres de sacerdote e dedicou-se intensamente à pesquisa de um modo que poucas pessoas conseguiriam imitar. Ele tinha um talento e nos deixou um presente por meio de suas publicações. Não era um padre que passou seu tempo em uma paróquia, mas serviu a Igreja e os fiéis oferecendo seu conhecimento. Hoje sou mãe e passo o tempo todo em casa, mas me beneficio do trabalho do padre Jaki e o comunico a outros. Eu não poderia ter feito o que ele fez, e ele não poderia fazer o que eu faço. Somos diferentes, mas estamos conectados, em comunhão”, conclui.
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