Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Tubo de Ensaio

Tubo de Ensaio

Ciência, religião e as pontes que se pode construir entre elas

Caso Galileu

Quando Bento XVI foi cancelado por uma afirmação sobre ciência e fé que ele não fez

Bento XVI Alemanha
O papa Bento XVI em visita à Alemanha, em 2006. (Foto: Matthias Schrader/EFE/EPA)

Ouça este conteúdo

Ainda no embalo da experiência inesquecível de ter ido a Roma para cobrir a eleição do papa Leão XIV, passei as férias dedicando parte de minhas leituras a um outro papa que admiro muito, Bento XVI. Li sua entrevista pós-renúncia ao jornalista Peter Seewald, publicada em 2017 com o título (um tantinho sensacionalista) de O Último Testamento, e também as memórias do arcebispo Georg Gänswein, secretário pessoal de Bento XVI por muitos anos, intituladas Nada mais que a verdade. Neste segundo livro, soube alguns detalhes de um episódio que cobriu de vergonha o meio universitário italiano; até então, eu não sabia que aquele acontecimento tinha a ver com afirmações sobre ciência e fé... que Bento XVI não fez.

Em janeiro de 2008, o papa Bento XVI faria um discurso na Universidade de Roma La Sapienza, mas o evento foi cancelado devido ao enorme barulho feito por uma minoria raivosa de militantes – especialmente os professores do Departamento de Física, liderados por um certo Marcello Cini. Sua principal alegação era o fato de que, em 1990, o então cardeal Joseph Ratzinger havia reproduzido, em uma conferência na cidade de Parma, uma afirmação do filósofo da ciência (e agnóstico) Paul Feyerabend, para quem “a Igreja, na época de Galileu, foi muito mais fiel à razão que o próprio Galileu (...) o veredito da Igreja contra Galileu foi racional e justo”. Bastou para toda a rasgação de vestes, protestos e ameaças de tumulto caso o papa realmente fosse à universidade; Bento XVI, então, preferiu cancelar a visita, enviando o texto de sua palestra para que fosse lido por um pró-reitor, e guardando para si a tristeza de ver em que havia se transformado um ambiente criado por um papa (Bonifácio VIII, em 1303) para a livre troca de ideias.

“A fé não cresce pelo ressentimento ou pela rejeição da racionalidade, mas pela sua afirmação fundamental e pelo fato de estar inscrita em uma forma de razão ainda maior.”

Joseph Ratzinger, durante conferência proferida em 1990 na cidade de Parma.

Acontece que Bento XVI, quando citou Feyerabend, não estava endossando as palavras do filósofo! Nos dias que antecederam o discurso cancelado, o vaticanista John Allen Jr. recuperou a íntegra da fala de Ratzinger em 1990 e publicou uma tradução em inglês. Nela, está claro que o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé considerava “drástica” a avaliação de Feyerabend, e ainda arrematava, comentando esta e outras avaliações (como a do marxista Ernst Bloch) que criticavam o mito iluminista criado em torno do caso Galileu, dizendo que “seria absurdo, com base nessas afirmações, construir uma apologética apressada. A fé não cresce pelo ressentimento ou pela rejeição da racionalidade, mas pela sua afirmação fundamental e pelo fato de estar inscrita em uma forma de razão ainda maior”.

Galileu nem sequer era o assunto principal da palestra de Ratzinger; era apenas um exemplo de uma “crise de fé” que afetava a ciência, ao mostrar como a percepção do caso Galileu havia mudado ao longo dos séculos. A filosofia pós-moderna, ao promover um relativismo sem limites, sugou consigo neste turbilhão a ciência e a tecnologia; contra essa tendência, Ratzinger estava fazendo uma defesa da racionalidade galileana, como afirmou Giorgio Israel, professor de História da Matemática na La Sapienza, que nem católico era.

VEJA TAMBÉM:

Será que o professor Cini e os demais signatários da carta de protesto contra o convite a Bento XVI não haviam lido a íntegra da fala de Ratzinger em 1990? Se reclamaram sem ler, só isso já nos dá muitos motivos para desconfiar do rigor intelectual de todos eles; pior ainda seria se, tendo a chance, os 67 indignados não quiseram ler a palestra completa para não correr o risco de descobrir que seu argumento não parava em pé. E, se leram e mesmo assim alegaram que Ratzinger endossara a frase de Feyerabend, sobram apenas duas hipóteses: analfabetismo funcional ou má-fé escancarada. Eu apostaria tranquilamente na segunda hipótese.

Já tratamos exaustivamente do caso Galileu na coluna, e quem acompanha o Tubo de Ensaio sabe que não compro nem de longe esse mito iluminista de uma Igreja retrógrada que deseja frear o avanço da ciência, mas também não compro um revisionismo que isenta as autoridades eclesiásticas e coloca toda a culpa da disputa nas costas do astrônomo e matemático toscano. O caso todo está cheio de nuances em que todos os envolvidos tiveram seus acertos e seus erros, e foi um marco a partir do qual a Igreja passou a ser muito mais prudente ao apreciar novas teorias científicas e sua compatibilidade com a fé católica. Mas, pelo jeito, os professores de La Sapienza que “cancelaram” Bento XVI em 2008 ficaram parados no século 18, em suas ideias e em seus preconceitos.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.