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Tubo de Ensaio

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Ciência, religião e as pontes que se pode construir entre elas

Willem Eijk

O dia em que eu encontrei um “papabile”

cardeal Willem Eijk
O cardeal holandês Willem Eijk deixa o palácio arquidiocesano de Utrecht para participar dos funerais do papa Francisco e do conclave, em Roma. (Foto: Ramon Mangold/EFE/EPA)

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Quando o cardeal Willem Eijk participou do conclave de 2013, ele ainda era um novato, tendo recebido o barrete vermelho de Bento XVI havia pouco mais de um ano. Desta vez, ele não só é um cardeal muito mais experiente: o holandês é considerado um dos possíveis candidatos a se tornar o sucessor do papa Francisco. Dez anos atrás, em março de 2015, ele esteve em Curitiba para participar de um seminário organizado pela Arquidiocese de Curitiba, pela CNBB e pela PUCPR, celebrando os 20 anos da encíclica Evangelium Vitae, de São João Paulo II. Na véspera do evento, tive a chance de encontrá-lo e conversar um pouco com ele. Por motivos que já não me lembro, a entrevista inexplicavelmente acabou nunca sendo publicada. Mas não perdi o áudio, e recordo aqui as partes mais importantes dela.

Lembro-me que tive de esperar um pouco, porque o cardeal Eijk estava terminando suas orações. Mas, depois, tivemos meia hora de conversa, que começou com um relato pessoal. Lembrei que o papa Francisco era um técnico em Química tornado padre, e ele era um médico tornado padre; perguntei como havia sido essa transição. Ele, então, me contou que tinha sido coroinha e sua vocação sacerdotal surgiu logo cedo, mas ele cresceu no imediato pós-Concílio Vaticano II. “A Igreja na Holanda passou por uma grave crise. Muitos padres deixaram o sacerdócio, inclusive alguns que lecionavam na escola onde eu estudava. Não era um ambiente muito favorável ao desenvolvimento de uma vocação”, disse Eijk. Por fim, ao ver a mãe falecer de câncer, o jovem Willem decidiu abraçar a carreira médica. Formou-se em 1978 e começou a trabalhar em um hospital universitário.

“Falar do ensinamento católico sobre temas de ética médica na Holanda era um desafio. Encontrei muita resistência. Mas Jesus nos pediu para proclamar a verdade.”

Cardeal Willem Eijk

“Mas o desejo de ser padre, que é um dos sinais de uma vocação sacerdotal, nunca me deixou”, contou o cardeal Eijk. No fim, ele decidiu entrar para o seminário, embora ainda tivesse de conciliar os estudos para o sacerdócio com um pouco de prática médica, até parar de vez em 1980 e dedicar-se apenas à formação sacerdotal, sendo ordenado em 1985. No fim, a ética médica foi a maneira de Willem Eijk unir o seu lado padre e o seu lado médico, graças à iniciativa de seu bispo de mandá-lo para estudos de pós-graduação fora de sua diocese. “Meu doutorado em Filosofia, em Roma, foi sobre modificação genética em seres humanos. Antes disso eu já tinha um doutorado em Medicina na Universidade de Leiden, com uma tese sobre eutanásia”, contou. Eijk criou uma Fundação de Ética Médica com alguns amigos, e passou a lecionar disciplinas ligadas à bioética e à teologia moral até se tornar bispo, em 1999.

“Sou feliz e agradecido por Deus ter me dado a possibilidade de me especializar em bioética”, disse o cardeal Willem Eijk, que não abandonou o assunto ao se tornar bispo – pelo contrário: seus novos cargos lhe deram mais autoridade para falar. Perguntei a ele, então, sobre as dificuldades de defender a doutrina da Igreja sobre a vida em um país como a Holanda – “o lugar onde o diabo faz test drive”, nas palavras do ex-colunista da Gazeta Carlos Ramalhete. “Falar do ensinamento católico sobre temas de ética médica na Holanda era um desafio. Encontrei muita resistência. Mas Jesus nos pediu para proclamar a verdade, e nada mais que a verdade, como Ele fez. É assim que seguimos e imitamos a Cristo; então, não deveríamos ter medo, como João Paulo II sempre disse. Não ter medo de proclamar o Evangelho e a doutrina da Igreja. E, além disso, sempre se encontram amigos. Não muitos, mas eles existem e são fiéis”, afirmou o cardeal.

Eijk também defendeu o direito de a Igreja participar do debate público e rejeitando a noção de que a fé é algo estritamente privado. A conferência episcopal holandesa foi bastante atuante durante as tentativas de legalizar a eutanásia na Holanda, tendo publicado um livro, cuja edição em inglês foi enviada a todas as conferências episcopais do mundo. “Eu, pessoalmente, como me tornei referência em ética médica entre os bispos holandeses, ocasionalmente escrevo artigos sobre esses temas, e há publicações não religiosas que aceitam esses artigos. E as pessoas não ficam indiferentes; elas reagem ao que foi escrito, mostrando que temos um papel na sociedade. Uns discordam, outros concordam – e não são apenas os católicos que concordam. Isso mostra que é possível ter voz em um país bastante secular. É só não perder a coragem”, aconselhou.

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Os estudos de Willem Eijk o colocaram na vanguarda dos debates sobre ética médica. “Quando escrevi minha tese [sobre engenharia genética], lá no fim dos anos 80, um padre amigo me disse que aquilo era ‘música do futuro’. Naquela época imaginávamos que as terapias genéticas estariam disponíveis em breve, mas foi um grande engano. Muitas experiências deram errado e nos mostraram que não seria tão fácil assim”, disse o cardeal, embora ele também acreditasse que o avanço nessa área seria inevitável. “A terapia para prevenir ou curar doenças é uma coisa boa, mas, quando você usa modificações genéticas para melhorar gente já saudável, você está usando seres humanos e seus corpos como meros instrumentos, para ganhar qualidades que a sociedade considera importantes, ou mesmo qualidades que a própria pessoa deseja. Isso viola o valor da natureza biológica do ser humano, que não é um instrumento, é alguém que tem valor intrínseco”, acrescentou.

Perguntei a Eijk como ele via a colaboração entre ciência e religião, não apenas no campo da bioética. “Fé e razão não são separadas uma da outra; elas se distinguem, mas não se excluem – pelo contrário, uma pressupõe a outra. A mesma razão humana que empregamos na ciência, quando iluminada pela graça divina, resulta na fé. Sabemos que Deus é um, em três pessoas. É uma questão de fé. Sabemos que Jesus, o filho de Deus, se tornou homem por nós e morreu na cruz para nos salvar. É questão de fé. Mas Cristo de fato se fez homem, incluiu a realidade terrena. Para a religião católica, a realidade terrena é uma expressão da maneira como Deus cria o mundo, e é muito importante”, afirmou o cardeal, acrescentando que muita gente se engana ao ver contradição entre fé e razão: “as pessoas se esquecem de que a fé católica pressupõe o valor da realidade terrena”.

“A fé na criação significa que o universo que conhecemos é uma estrutura projetada por um ser inteligente, por Deus. Essa fé não exclui a razão ou as ciências naturais, porque elas pressupõem uma à outra.”

Cardeal Willem Eijk

O cardeal Willem Eijk citou especialmente a teologia da criação como um ponto de contato entre ciência e religião. “A fé na criação significa que o universo que conhecemos é uma estrutura projetada por um ser inteligente, por Deus. O universo tem uma estrutura, existe um plano por trás da criação, do universo, cujas leis e estrutura podemos estudar – é justamente o que tentamos descobrir por meio da ciência. É por isso que, como eu falei, a fé na criação não exclui a razão ou as ciências naturais, porque elas pressupõem uma à outra”, afirmou Eijk, observando que as discussões sobre criação ou evolução não eram um tema relevante de discussão sobre ciência e fé na Holanda. “As nossas grandes discussões sempre foram sobre bioética. Mas as leis foram sendo aprovadas, tudo foi sendo legalizado, e o debate público caiu de intensidade. Os cristãos somos minoria hoje na Holanda, nós levantamos a voz o máximo possível, mas uma minoria não consegue gerar muita tração política”, lamentou.

Por fim, perguntei a Eijk como a religião poderia contribuir com a ciência, ou com os cientistas. O cardeal lembrou que vivemos na era do “individualismo expressivo”, em que “o indivíduo se coloca num pódio e enxerga os demais como espectadores. Ele acha que tem não só o direito, mas a obrigação de se diferenciar dos outros pela aparência externa”, e que “tem de escolher por si mesmo, jamais seguindo os outros ou a massa. Os jovens acham que são autônomos, mas no fim das contas seguem a opinião pública, o que os meios de comunicação de massa e a publicidade lhes dizem”. A religião, para o cardeal, serve de antídoto a essa tendência ao lembrar as pessoas de que nossa natureza, dada por Deus, é a de seres sociais. “Nossa personalidade é formada pelo contato com outros, e isso nos une. Há uma dignidade universal na natureza biológica humana. Não é questão de gosto individual, mas algo que nos é dado. Deveríamos nos esforçar para descobrir e desenvolver esse sentido de dignidade universal. E isso nos dá uma direção. A religião, e a fé católica em especial, dá direção à vida”, finalizou.

Por alguma razão misteriosa, não pedi para tirar uma foto com o cardeal Eijk. Se ele sair do conclave vestido de branco, esse imediatamente se tornará um dos maiores arrependimentos da minha vida; como é que eu vou mostrar aos meus filhos que um dia eu conversei com um futuro papa?

Uma frase final

“Enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência.” (Papa Francisco, encíclica Lumen Fidei, 2013)

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