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Direto de Cambridge: dia 1
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O curso aqui em Cambridge começou com a corda toda! Como eu tinha antecipado ontem, hoje tivemos uma espécie de abertura tratando de ciência e religião em geral, sob um prisma histórico-filosófico.

O primeiro a falar foi Ian Hutchinson, professor de Ciência Nuclear e Engenharia no Massachussets Institute of Technology (MIT), nos EUA. Ele lançou um livro chamado Monopolizing Knowledge, e sua palestra foi justamente uma refutação do cientificismo, aquela ideia segundo a qual só tem validade o que pode ser apreendido pelas ciências naturais, o que pode ser testado, repetido, medido e observado, que Hutchinson compara a uma visão CSI de mundo, em que a ciência experimental resolve tudo sem apelar para mais nenhum elemento. O primeiro significado do termo latino scientia era bem mais amplo; foi a partir dos séculos 18 e 19 que ele ganhou o significado de “ciências naturais”, embora ainda haja resquícios do uso antigo em termos como “ciência política”. Quando se fala hoje de “ciência e religião”, o assunto é a conciliação (ou não) das religiões com as ciências naturais.

Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo
A ressurreição de Cristo representada em um vitral da capela do King`s College, em Cambridge: evidências no mesmo nível de outras afirmações sobre personagens da Antiguidade.

O trabalho de Hutchinson é desconstruir a noção cientificista mostrando que há tipos válidos de conhecimento que não necessariamente são demonstrados em laboratório (e mesmo algumas das ciências naturais não atendem a todos aqueles requisitos; a Astronomia, por exemplo, depende puramente de observação, já que os fenômenos não podem ser reproduzidos). Um exemplo é a arte: até é possível “mostrar” digitalmente uma composição, com ondas e tudo, mas isso resume tudo? Na verdade, qual é a graça de uma representação digital do Oratório de Natal de Bach (foi o exemplo que Hutchinson usou; ele mostrou as ondas e perguntou se sabíamos o que era; até acertaram que era Bach, mas foi no chute) se não o captamos com os nossos ouvidos? Outro exemplo é a História. Como ter certeza absoluta de que Júlio César foi morto no Senado, em 44 a.C.? Certo, temos os relatos, mas e a evidência “científica”? Hutchinson acrescenta, no entanto, que o conhecimento não perde valor por ser não científico. Quem pensa que algo precisa ser científico para ser levado a sério na verdade já foi contaminado pelo cientificismo.

A questão do cientificismo é importante porque o ateísmo militante usa justamente os argumentos cientificistas para desqualificar o conhecimento religioso. O suposto “conflito” entre ciência e fé é um capítulo de uma luta maior, dos cientificistas contra o resto. Hutchinson mostra inclusive que o cientificismo tem potencial de seita (vide a tal Igreja Positivista), e já vem se aventurando até em aplicar descobertas científicas a valores e comportamentos. O esforço a se fazer, aqui, é desmontar a visão cientificista, e passar a reconhecer o valor de conhecimentos e evidências não científicas (e nesse caso ele afirma que a ressurreição de Cristo, por exemplo, tem evidências no mesmo nível de muita coisa que se dá como certa sobre personagens da Antiguidade; no caso, relatos).

A palestra seguinte foi de Nidhal Guessoum, astrofísico argelino que leciona nos Emirados Árabes Unidos. Ele mostrou como o Islamismo encara a ciência moderna, mas antes fez uma introdução histórica sobre a ciência nos primeiros séculos do Islã, uma ciência profundamente teísta e baseada em versos do Corão segundo os quais a natureza dá sinais sobre o Criador, que fez um universo ordenado. A noção de causalidade, por exemplo, era profunda entre os primeiros naturalistas islâmicos porque, para a justiça divina e o livre arbítrio funcionarem, as escolhas individuais precisavam levar a consequências de uma maneira ordenada. No entanto, essa não é uma visão determinista porque considera o impacto das escolhas e ações humanas.

Guessoum mostrou personagens mais e menos conhecidos do mundo ocidental, como Avicena, Averróes e Biruni, que se considerava um cientista, mas não filósofo, e questionava coisas como a necessidade de os planetas terem órbitas circulares. As objeções de Biruni a Aristóteles renderam uma correspondência rica com o aristotélico Avicena. Outro personagem importante foi Ibn al-Haytham (965-1039), pioneiro da Óptica e uma das primeiras pessoas, se não a primeira, a aplicar o método científico.

Reprodução
A abordagem de Averróes sobre as ciências naturais é a preferida de Nidal Ghessoun.

Feita essa introdução, Guessoum mostrou as três correntes atuais sobre a relação entre ciência e Islã. Uma defende que a ênfase atual na ciência é um modismo passageiro, e uma anomalia que se desconectou de Deus; defende a busca da informação pela razão ou pela intuição individual, e que valores, propósito e harmonia são mais importantes que a objetividade. A segunda corrente enfatiza as consequências éticas da atividade científica; não a condena, mas diz que ela deve se nortear pelos princípios islâmicos, como a justiça e o respeito ao planeta. A terceira defende simplesmente que a ciência é universal e não existe uma “ciência islâmica”.

Guessoum prefere a proposta de Averróes, para quem a ciência garante o que é fato e, se houver alguma contradição entre o Corão e o dado científico, é preciso rever a hermenêutica do texto sagrado. Isso é exatamente o que são Roberto Belarmino pensava no século 17 (depois da palestra perguntei a Guessoum se Belarmino teria adotado essa ideia inspirado em Averróes; o professor acha que o italiano chegou a essa noção de forma independente). Para o astrofísico, o teísmo serve como interpretação, mas sem interferir em processos científicos; importa é fazer ciência com princípios éticos e trabalhar para harmonizar o texto sagrado com as descobertas científicas.

A tarde foi dominada por palestrantes de Oxford (ou “that other place”, como o pessoal daqui define a outra universidade). O historiador Allan Chapman disse que hoje é preciso ser “revisionista” quando o assunto é a relação entre ciência e fé. Crescemos pensando mal da Idade Média e do cristianismo, quando na verdade boa parte do que o cidadão médio sabe é fruto de mentiras baseadas em uma agenda secularista e anticristã. No entanto, Chapman tem uma ideia potencialmente explosiva: para ele, a Reforma protestante também tem uma boa parcela de culpa, ao ter promovido a desmoralização do catolicismo medieval. Essa desmoralização foi adotada pelos iluministas, que a usaram contra os próprios protestantes depois.

Passando pelos casos de Giordano Bruno e Galileu, Chapman mostrou como, por exemplo, os valores que emanciparam os escravos na América não foram os da Revolução Francesa, e sim os cristãos; o maior defensor da causa abolicionista na Inglaterra foi o bispo William Wilberforce, pai de Samuel, aquele que se meteu num debate com Huxley a respeito da evolução (a contestação de Samuel Wilberforce a Darwin, aliás, não tinha nada de religiosa; tinha base científica).

Durante uma sessão de perguntas e respostas com os palestrantes do dia, alguém quis saber por que esse “revisionismo” só aconteceu recentemente, considerando que, por exemplo, as obras de White e Draper são do século 19. Chapman acredita que a desmistificação não ocorreu antes porque a história da ciência é um campo relativamente decente.

Quem fechou o dia foi Katherine Blundell, professora de Astrofísica. Depois de continuar, de uma forma ou de outra, as observações de Hutchinson sobre as particularidades da Astronomia entre as ciências naturais, e de explicar com certo grau de detalhe (o máximo que não astrônomos conseguem suportar) os primeiros momentos do universo, ela se propôs a mostrar como o cristianismo é compatível com o Big Bang. O primeiro passo, diz, é encarar a evidência com humildade, já que muita gente só costuma ver o que agrada e descartar o que não bate com algum preconceito prévio.

A palestra de Katherine foi uma pancada forte no Deus das lacunas, esse nosso velho conhecido. Há quem divida o universo em “previsível/compreensível” e em “miraculoso/incompreensível”, e coloca Deus no segundo campo. Mas isso não é resposta, ela argumenta. O “Deus que acende o pavio” do Big Bang e depois pula fora, virando observador, também não é suficiente. Esse é o Deus dos deístas. Os cristãos acreditamos em um Deus que cria e sustenta o mundo com Sua vontade (esse segundo verbo é essencial), além de ser um Deus pessoal que se relaciona com suas criaturas.

Claro, tem o relato do Gênesis. Katherine argumenta (e nisso eu vejo uma convergência com o que Ghessoun tinha dito de manhã) que há diferentes níveis de resposta no texto bíblico que é preciso compreender.

Eu disse no começo que as palestras de hoje foram, assim, uma abertura, não foi? Imaginem como será o resto… o tema de amanhã é Fé e Física.

Aviso: o blogueiro viajou para a Inglaterra graças a uma bolsa concedida pelo Instituto Faraday.

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