Se há alguém hoje, nos Estados Unidos, que seja o rosto público da colaboração entre ciência e catolicismo, é o irmão jesuíta Guy Consolmagno, diretor do Observatório Vaticano, que tem sede em Castel Gandolfo, perto de Roma, mas também opera um telescópio na Universidade do Arizona. Consolmagno já foi entrevistado em talk shows como o de Stephen Colbert, aparece em convenções de ficção científica, escreve livros e já foi premiado pela Sociedade Astronômica Americana com a Medalha Carl Sagan, por seu papel de comunicador da ciência para o público em geral.
Consolmagno foi uma vocação tardia para os jesuítas: entrou na ordem em 1989 e fez seus votos em 1991, já beirando os 40 anos, tendo passado antes por Harvard e pelo MIT. No Observatório Vaticano, ele começou como curador da coleção de meteoritos, posição que manteve até 2015, quando o papa Francisco o nomeou diretor da instituição. Em entrevista por e-mail, o jesuíta explicou o papel atual do observatório, como ele pode contribuir com o diálogo entre ciência e fé, e falou um pouco sobre a fascinação humana com a possibilidade de haver vida inteligente fora da Terra, tema sobre o qual ele sempre é provocado.
Qual a razão de haver ainda hoje um Observatório Vaticano? Fazia todo o sentido numa época em que a Igreja era a única ou a principal instituição no campo da educação, mas atualmente, com tantas universidades, laboratórios, institutos de pesquisa públicos e privados, por que a Igreja mantém um observatório astronômico?
Continua fazendo sentido por muitos motivos. A missão do Observatório Vaticano ainda é a mesma de quando o papa Leão XIII estabeleceu o observatório no seu formato atual, em 1891: mostrar ao mundo que a Igreja apoia a boa ciência. Claro que tanto o mundo quanto a ciência mudaram bastante nesses últimos 130 anos, mas a necessidade ainda existe.
Creio que hoje um dos nossos públicos mais importantes no “mundo” são as pessoas dentro da própria Igreja. Especialmente na América do Norte, mas também na Europa e em outros continentes, há uma sensação crescente de que não dá para confiar na ciência. Isso é um problema ainda maior quando a pessoa acredita que a ciência, ainda por cima, é antirreligiosa. Mas o Observatório Vaticano, como instituição científica apoiada pela Igreja, mostra que essa ideia é falsa, só pelo fato de existirmos.
Além disso, somos um sinal visível da ciência feita pelo melhor dos motivos: o amor e a alegria em descobrir a verdade sobre o universo que Deus fez. Muitos cientistas, o tempo todo, acabam perdidos no labirinto que é a carreira acadêmica, só pensam em progredir na carreira, conseguir bolsas melhores, e perdem de vista as razões mais profundas pelas quais fazemos o que fazemos. Falo por experiência própria, porque eu mesmo estava caindo nessa quando era um cientista jovem; acabei me afastando por um tempo para trabalhar na África e no Corpo da Paz norte-americano, e aí meu entusiasmo pela astronomia foi reavivado.
“Há uma sensação crescente de que não dá para confiar na ciência. Isso é um problema ainda maior quando a pessoa acredita que a ciência, ainda por cima, é antirreligiosa. Mas o Observatório Vaticano mostra que essa ideia é falsa.”
Guy Consolmagno
Também servimos para lembrar que o Estado da Cidade do Vaticano é uma nação independente, com instituições nacionais como um observatório nacional. Isso nos dá uma plataforma para a parte “política” do trabalho com o espaço: participar de comitês da União Astronômica Internacional, ou trabalhar com o Escritório das Nações Unidas para os Assuntos Espaciais, onde servimos de campo neutro e independente para workshops.
O Observatório Vaticano também tomou parte em questões de nomenclatura do Sistema Solar (incluindo o status de Plutão), e recentemente fomos sede de um workshop sobre o uso pacífico do espaço. Nossas Escolas de Verão bienais são ocasiões em que jovens cientistas de vários países – inclusive nações rivais – podem se encontrar e crescer juntos em conhecimento e amor pelo universo.
E, finalmente, dada a nossa condição de sermos tanto pessoas religiosas quanto cientistas, somos uma escolha óbvia para eventos e publicações no campo dos estudos sobre ciência e fé, que está crescendo. Como você pode ver, trabalho não falta.
Que tipo de pesquisa vem sendo feita atualmente no Observatório Vaticano?
A pesquisa científica é o coração da nossa missão. Temos atualmente uma dúzia de cientistas com dedicação integral em nosso quadro. São padres ou irmãos, todos com doutorado em Astronomia ou algum campo correlato. Mas, claro, somos muito diversos, temos gente de quatro continentes, e cada um tem seu próprio campo de pesquisa.
Eu poderia passar o dia todo falando de cada projeto que desenvolvemos, mas vou ficar apenas nos mais importantes. O irmão Bob Macke é, talvez, o maior especialista em todo o mundo na medição de propriedades físicas de meteoritos, e está no time da missão Lucy, da Nasa, que vai mandar uma nave para estudar os “asteroides troianos”, na órbita de Júpiter. O padre Gabriele Gionti é especialista em gravidade quântica, uma teoria que tenta unificar a teoria quântica e a relatividade, especialmente em relação às condições que havia no universo imediatamente depois do Big Bang. Os padres David Brown e Pavel Gabor são colaboradores do Potsdam Echelle Polarimetric and Spectroscopic Instrument (Pepsi), que usa nosso telescópio no Arizona para analisar estrelas que podem ser seus próprios sistemas solares. O padre Jean-Baptiste Kikwaya Eluo é especialista em meteoros e está envolvido em três redes de câmeras instaladas para gravar e caracterizar meteoros e bólidos, produzidos por material de cometas e asteroides que atingem a atmosfera terrestre. E o padre Richard D’Souza é um teórico interessado na estrutura das galáxias, e que está ampliando seu programa de pesquisa para observá-las; ele recentemente ganhou tempo de trabalho com o telescópio espacial Hubble.
Como os integrantes do Observatório que são padres ou irmãos jesuítas conciliam seu trabalho científico e a vida religiosa no dia a dia?
O modo como dividimos nosso tempo entre os deveres religiosos e científicos é bem parecido com o equilíbrio que meus colegas casados encontram entre a ciência e a família: claro que achamos tempo para ambos! Assim como meus colegas leigos encontram apoio e refúgio no amor de suas famílias, nós, cientistas religiosos, encontrarmos na vida religiosa ativa a fonte da alegria que nos motiva no trabalho. Isso inclui missa diária, oração diária e retiros anuais. Muitos na nossa equipe rezam missa aos fins de semana em paróquias ou outros locais como asilos, uma prisão e um câmpus universitário. E a nossa comunidade oferece uma chance de dividir as alegrias do trabalho diário com os demais. Especialmente nesses dias de pandemia, ter uma comunidade onde podemos celebrar a missa e fazer refeições em comum é uma bênção incrível.
Sua especialidade são meteoritos, mas nas suas frequentes aparições na mídia acabam lhe perguntando muito sobre vida alienígena inteligente, que já foi tema até de eventos na Pontifícia Academia de Ciências.
Sim; uma vez, na Inglaterra, um repórter me perguntou se eu batizaria um extraterrestre. Respondi “claro, se ele me pedir”. A pergunta virou título de um livro que escrevi com outro integrante do Observatório Vaticano.
E por que as pessoas são tão fascinadas com alienígenas, e tantos ficam curiosos, ou preocupados, com as consequências para a religião caso encontremos vida inteligente fora da Terra?
Parte disso, acho, está na esperança de que os ETs vão nos oferecer todas as respostas. Mas claro que isso é uma bobagem, em diversos sentidos. Ter tecnologia mais avançada não quer dizer que a ética deles seja melhor. E nós já temos um Salvador, que muita gente, aliás, se esquece de ouvir.
Algum dia teremos a chance de encontrar (e talvez batizar) extraterrestres?
Eu ficaria surpreso se só houvesse vida na Terra, ou se fôssemos a única forma de vida inteligente no universo. Mas também ficaria surpreso se conseguíssemos nos comunicar com qualquer alienígena, simplesmente porque o universo é tão grande que nem sei como seríamos capazes de encontrar uns aos outros. Mesmo enviando sinais à velocidade da luz, levaria milênios para começar uma conversa.
“Não fazemos o que fazemos por reconhecimento, fazemos porque amamos fazer isso. Nesse processo, esperamos lembrar nossos colegas sobre o maior objetivo por trás do nosso trabalho: encontrar Deus na verdade.”
Guy Consolmagno
E qual a sua avaliação sobre o nível do debate sobre ciência e fé na imprensa? Estamos rumando para uma discussão mais profunda ou vamos ficar presos nos clichês, slogans e falsificações históricas, como os casos de Galileu e Giordano Bruno?
É como em qualquer outro tema: a qualidade da cobertura vai do terrível ao brilhante. Imagine ir a uma competição esportiva e ler sobre ela no dia seguinte. Em alguns casos, você nem consegue acreditar que o repórter esteve no mesmo jogo que você; em outros, o repórter nos mostra coisas importantes que não percebemos mesmo estando lá no estádio. Agora, imagine que você não estava assistindo ao jogo, mas jogando, e você verá como cresce o leque que vai do relato sem noção à reportagem cheia de ideias interessantes.
Eu já fui um jovem jornalista, então tenho grande respeito por jornalistas. Sei como seu trabalho é difícil. Também ensinei ciência a estudantes de Jornalismo, e pude ver quão preguiçosos alguns deles podem ser... em outras palavras, jornalistas não são muito diferentes de qualquer outra pessoa.
E também vejo a sabedoria por trás daquele ditado “falem bem, falem mal, mas falem de mim”. Mesmo quando alguns sites publicam as histórias mais absurdas e totalmente falsas (não, nós não temos um telescópio chamado “Lucifer”!), ainda assim isso acaba ajudando a espalhar a ideia de que o Vaticano apoia a astronomia, e é isso que importa.
Que papel o Observatório Vaticano pode ter no estímulo a uma discussão mais aprofundada sobre temas de ciência e fé?
Primeiro, nós somos um espaço onde cientistas, filósofos e teólogos se sentem à vontade para vir e discutir esses temas todos juntos. Uns 20 anos atrás organizamos uma série de seminários que levou à publicação de muitos bons livros sobre a forma como Deus age no universo. E, entre os nossos recursos em Castel Gandolfo, há uma ótima biblioteca com livros históricos e modernos, que já foram usados por muitos especialistas para ajudá-los em suas pesquisas.
Além disso, só por sermos cientistas e também religiosos, já acabamos com o falso estereótipo da guerra entre ciência e fé. Isso anima outros cientistas que creem, e estimula os especialistas que estudam as maneiras reais como ciência e religião interagem.
E como Deus age no universo? Podemos conciliar a ideia de leis fixas do universo com um Deus que se preocupa conosco, que responde orações, que realiza milagres?
Bom, aquele workshop rendeu sete livros densos, então explicar vai ser meio complicado e talvez eu não faça justiça ao trabalho que saiu dali. Mas vou mostrar algumas formas pelas quais Deus claramente age no universo.
Como seres humanos, somos pessoas com livre arbítrio. Estamos em um universo limitado pelas leis naturais, mas podemos escolher agir ou não agir dentro dessas leis. Eu posso escolher me jogar do telhado, e a lei da gravidade vai fazer o resto. Mas também posso escolher não pular; essa escolha não viola lei alguma. Então, se Deus inspira qualquer um de nós a agir de uma forma que mude o mundo à nossa volta, tornamo-nos Seus agentes livres fazendo com que Sua vontade se realize (e não adianta argumentar com quem negue o livre arbítrio, já que, se eles estão certos, não há como nenhum dos debatedores fazer o outro mudar de opinião). O exemplo mais espetacular, evidentemente, é a Encarnação, em que o próprio Deus se faz um desses indivíduos com livre arbítrio e o poder de mudar o mundo – o que Ele fez.
Há “coincidências divinas”. Por exemplo, alguns estudiosos da Bíblia perceberam que pode acontecer uma combinação muito incomum de maré baixa e ventos fortes que façam uma parte do Mar Vermelho secar. Mas o fato de que esse evento perfeitamente natural tenha ocorrido no exato momento em que Moisés precisava dele é certamente um milagre! E nem precisamos pensar nesse tipo de coincidência espetacular. Todos nós recordamos momentos de nossas vidas em que uma coincidência feliz fez toda a diferença. Coincidências existem; o fato de que elas venham pro bem é o que as faz especiais. De qualquer modo, lembremos que “milagres” não precisam ser uma violação das leis naturais; as pessoas reconheciam milagres muito antes de perceber a existência das leis naturais. Um milagre é um evento surpreendente que nos lembra da presença de Deus.
Também há o fato de que o universo é muito maior que átomos e forças. A ciência por trás das substâncias químicas na tinta pode explicar as cores dos pigmentos, mas não explicam por que as cores, organizadas de determinada maneira, resultam na Mona Lisa, com toda a sua história e beleza. Deus age ao encher esse universo com aspectos transcendentais como beleza e amor.
Essas são apenas especulações, não quero esgotar o tema; só dei esses exemplos para mostrar que, mesmo dentro de uma moldura materialista, podemos ver que Deus tem muitos modos de agir.
Existe algo de diferente em um cientista católico, cristão ou crente, que os outros cientistas não têm?
Há uma diferença tangível e outra intangível no modo como fazemos ciência. A diferença tangível, no caso específico do Observatório Vaticano, é que nossos cientistas não precisam ficar escrevendo enormes propostas para bolsas, e não estamos limitados a projetos que precisam apresentar resultados nos prazos normais dessas bolsas, que normalmente são de três anos. Podemos ter projetos de longo prazo. Vou dar alguns exemplos. O irmão Macke e eu temos estudado as propriedades físicas dos meteoritos por mais de 25 anos. Leva pelo menos cinco anos para desenvolver e testar cada um dos nossos procedimentos de medição; nunca conseguiríamos fazer isso com uma bolsa de três anos da Nasa. O padre Richard Boyle passou mais de 20 anos aperfeiçoando a observação de aglomerados estelares pouco brilhantes com um novo conjunto de filtros desenvolvido originalmente na Lituânia. O padre Chris Corbally desenvolveu um catálogo de espectros estelares. Todos esses trabalhos têm sido importantes para a comunidade astronômica, mas só foram possíveis com o financiamento de longo prazo do Vaticano, sem nenhum desses ciclos de projetos de bolsa.
A diferença intangível está no motivo pelo qual fazemos isso. Por mais que os resultados das nossas pesquisas e dados sejam bastante usados e citados, nada do que fazemos é o tipo de coisa que vai terminar com um Nobel ou algum reconhecimento parecido. Não fazemos o que fazemos por reconhecimento, fazemos porque amamos fazer isso. Claro, é mais fácil quando não se tem família ou alunos para sustentar. Mas, nesse processo, esperamos lembrar nossos colegas sobre o maior objetivo por trás do nosso trabalho: encontrar Deus na verdade.
“O universo é muito maior que átomos e forças. Deus age ao encher esse universo com aspectos transcendentais como beleza e amor.”
Guy Consolmagno
Como a fé religiosa e uma mente científica interagem em uma mesma pessoa? Crer em Deus faz de alguém um cientista melhor? Ou o conhecimento científico ajuda a aprimorar a crença ou o sentimento religioso?
Há grandes cientistas que são crentes, e grandes cientistas que dizem ser ateus. O que todo cientista tem em comum é um compromisso com a verdade, mesmo quando ela é inconveniente, e o amor pelo objeto do seu estudo.
Alguém já disse que, para ser um ateu, é preciso saber muito bem em que “deus” você não acredita. Na minha experiência, os que se dizem ateus rejeitam a crença em um deus no qual também eu não acredito. Normalmente é uma ideia bitolada de um deus cruel, uma noção que não evoluiu muito em relação ao que eles acreditavam quando eram crianças. O meu Deus é outro, é o Deus da verdade, o Deus que se deu a conhecer em verdadeira alegria. Mas cada cientista busca a verdade, e muitos cientistas já experimentaram o que C.S. Lewis descreveu como sendo “surpreendido pela alegria”. Então, não é que ser um crente faz de mim um melhor cientista, mas ser um cientista faz de mim um melhor crente – e torna “crentes” mesmo aqueles que julgam não acreditar.
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