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Mais um estudo sobre o Sudário de Turim está movimentando a comunidade de interessados nos estudos sobre a relíquia mais famosa da cristandade. Desta vez, é um artigo do brasileiro Cícero Moraes, publicado na revista Archaeometry – a mesma que, em 2019, publicou uma análise dos dados brutos do famoso teste de carbono-14, mostrando que os responsáveis pela datação forçaram bem a mão. Moraes, que é designer e pesquisador 3D, apresentou uma nova hipótese para a formação da imagem que está no pano venerado na catedral de Turim.
O designer usou técnicas de simulação em 3D para mostrar como apareceriam, em um pano como o do Sudário de Turim, as formas humanas se o tecido fosse colocado sobre um corpo humano real e sobre uma imagem em baixo-relevo (onde a imagem é apenas ligeiramente elevada em relação ao plano de fundo). E, depois, comparou os resultados com as fotos do Sudário. Moraes concluiu que, se o pano tivesse sido colocado sobre um corpo real, a imagem resultante seria distorcida, alargada para os lados, graças ao que é conhecido na literatura como “efeito Máscara de Agamenon”; já quando o tecido é colocado sobre um baixo-relevo, o resultado tem formas bem proporcionais, idênticas às vistas nas fotografias do Sudário. “O que demonstrei foi que a matriz responsável pela imagem no Sudário de Turim é, muito provavelmente, um baixo-relevo, e não um corpo humano, já que a imagem de um corpo real ficaria visivelmente deformada”, afirmou o designer à CNN Brasil. Vocês podem entender melhor o argumento de Moraes assistindo a um breve vídeo que ele publicou em seu canal no YouTube:
O Centro Internacional de Estudos sobre o Sudário (Ciss, na sigla em italiano) publicou, dias depois, uma resposta às alegações de Moraes. Entre outros aspectos, os especialistas do Ciss afirmam que os estudos feitos diretamente sobre o pano, no fim dos anos 70 do século passado, no Shroud of Turin Research Project (Sturp), já haviam excluído a possibilidade de a imagem ter sido formada por contato com esculturas em baixo-relevo, mesmo aquecidas, além de os pesquisadores do Sturp não terem encontrado nenhum sinal de pigmento no tecido. O Ciss ainda afirma que Moraes usou um modelo digital em que o corpo humano estava suspenso no ar, sem estar apoiado em um plano (o que afetaria o comportamento do tecido); que o software usado no estudo foi criado com fins criativos, e não científicos; e que o estudo falha em incorporar todas as outras pesquisas que apontam várias características incomuns do pano.
“Tais simulações, embora interessantes e potencialmente efetivas para propósitos educacionais ou multimidiáticos, enfrentam desafios significativos para serem aceitas como prova científica, e muito mais como prova conclusiva. (...) Modelos digitais podem contribuir para a discussão, mas não substituem as análises físico-químicas do tecido, que já excluíram a compatibilidade da imagem com métodos de pintura, contato com baixos-relevos, ou chamuscados provenientes de um baixo-relevo aquecido”, afirma o Ciss, acrescentando que vários elementos do Sudário de Turim seguem inexplicados, como o fato de haver imagem em áreas onde o pano não teria estado em contato com o corpo.
Qualquer estudo que não envolva a análise do Sudário propriamente dito, recorrendo a simulações, físicas ou digitais, esbarra em limitações
De fato, os pesquisadores do Ciss tocam em um ponto muito importante: qualquer estudo que não envolva a análise do Sudário propriamente dito, recorrendo a simulações, físicas ou digitais, esbarra em algumas limitações. Já tivemos verdadeiras tosquices, como quando Matteo Borrini e Luigi Garlaschelli apertaram uma esponja cheia de sangue em um manequim desses de loja de roupas, e usaram aquilo para dizer como o sangue no corpo de um crucificado deveria ter escorrido. Constrangedor, mas foi aceito para publicação e repercutiu nos principais veículos de comunicação do mundo. Não digo com isso que o estudo de Moraes esteja nesse nível (e não parece estar mesmo), mas as simulações realmente correm o risco de não capturar toda a realidade do Sudário de Turim e das circunstâncias que o envolvem.
O problema com Lanciano que os católicos não têm medo de identificar
Falando em relíquias e milagres, li no Substack da Stacy Trasancos (autora do ótimo Particles of Faith) um relato sobre uma alegação feita com frequência entre defensores da autenticidade do milagre eucarístico de Lanciano. Só recapitulando: em algum momento do século 8.º, um padre que celebrava missa na cidade de Lanciano duvidou brevemente da presença real de Cristo na Eucaristia; quando ele disse as palavras da consagração, a hóstia se tornou carne, e o vinho se tornou sangue coagulado. Ambos estão guardados até hoje em relicários nessa mesma cidade.
Há um estudo de Ruggero Bertelli e Oduardo (ou Eduardo) Linoli, feito nos anos 70, atestando que o relicário com o que era a hóstia continha músculo cardíaco e que o sangue coagulado era humano, tipo AB. Para desacreditar o milagre, ateus militantes costumam alegar fraude dizendo que Bertelli era, na verdade, economista – um erro primário, pois, embora de fato haja um Ruggero Bertelli economista, ele era muito jovem quando o estudo foi feito, e havia, sim, um homônimo anatomista, professor renomado da Universidade de Siena. Mas há defensores do milagre que afirmam existir uma outra pesquisa, da Organização Mundial da Saúde, das Nações Unidas, que corroboraria os resultados de Bertelli e Linoli, tendo feito mais de 500 testes. Essa informação já apareceu até em um catálogo do Vaticano, e a própria Stacy Trasancos conta ter mencionado esse estudo em palestras que deu sobre milagres eucarísticos. O problema é que tal pesquisa não existe.
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Pesquisando para escrever um livro sobre esses milagres, Stacy ficou intrigada com a falta de fontes primárias a respeito do tal “estudo da OMS”. Foi quando ela descobriu a entrevista de Franco Serafini, um médico católico que esteve em Lanciano e pediu aos frades da Igreja de São Francisco, onde estão as relíquias do milagre, para ver o tal estudo. Havia centenas de páginas, mas nada do que afirmavam por aí. A OMS não havia nem confirmado, nem desmentido as conclusões de Bertelli e Linoli. O pior é que, ao tentar encontrar a origem do boato, Stacy descobriu que havia gente atribuindo-o ao bem-aventurado (e em breve santo) Carlo Acutis, o que é falso; e que o primeiro a contar essa história pode ter sido o próprio Linoli, no início dos anos 2000.
Qual é a moral da história? Que os católicos são – ou ao menos deveriam ser – os principais interessados em eliminar qualquer tipo de alegações falsas quando se trata de fenômenos extraordinários. Se deixamos uma mentira passar impune, quem não crê terá o direito de questionar o que mais seria invenção. Quem passou adiante a história da OMS sem saber da verdade tem menos culpa, claro (talvez a culpa de não ter procurado verificar uma afirmação tão incrível), mas, uma vez ciente dos fatos, tem a obrigação de parar e de alertar os demais, como Stacy fez, e Serafini antes dela. Já os que criaram e espalharam o boato sabendo de sua falsidade (ou tendo a possibilidade de checar a história em primeira mão, mas abrindo mão de fazê-lo, como os franciscanos de Lanciano) têm muito mais responsabilidade e podem minar a fé de muitos em um assunto que é central no catolicismo.








