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Se Deus não é Deus de explicação, Ele é o quê?
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Um pouco a propósito das questões levantadas pelos comentaristas do Tubo sobre a real natureza de Deus, segue um texto do padre George Coyne, publicado recentemente no L’Osservatore Romano. O padre Coyne já foi entrevistado no Tubo sobre sua teoria do “Universo fértil”. O texto foi traduzido do italiano por mim para o site Sanctus Albertus Magnus, do Alexandre Zabot, mas ele me autorizou a publicar aqui também.

Gilberto Yamamoto

A nova cosmologia e a busca por uma estrutura matemática ideal
Deus não pode ser apenas uma explicação

Publicamos longos trechos do capítulo escrito pelo padre jesuíta, presidente da Fundação Observatório do Vaticano, integrante do livro Deus hoje. Com Ele ou sem Ele, tudo muda (Siena, Cantagalli, 2010, 236 p.), que compila os relatórios do congresso organizado pelo Comitê para o projeto cultural da Conferência Episcopal Italiana, ocorrido dezembro passado.

George V. Coyne

A evolução é uma característica intrínseca ao universo, da qual não se pode prescindir quando se quer dar uma explicação seja de seu conjunto, seja de suas partes. Considerando a idade do universo, o surgimento da vida é um fato relativamente recente. Não há dúvida de que nestes últimos tempos o interesse pela vida extraterrestre tem crescido muito, mas o que verdadeiramente deve nos surpreender não é tanto descobrir que exista vida também fora da Terra, mas o mero fato de que simplesmente exista vida no universo. Fato é que foram necessários 12 bilhões de anos antes que, com a evolução do universo em expansão, houvesse as condições necessárias para que a vida começasse a existir – condições que, nesta longa evolução, não poderiam atuar sem a contínua participação de circunstâncias físicas particulares, consideradas indispensáveis para a própria existência da vida. Diante de tal fato se pode raciocinar de duas maneiras: a vida não tem outro significado a não ser o de representar o estágio final do longo processo de evolução do universo; ou, então, é o ápice de um desenvolvimento extremamente longo e delicado de um programa representado pelas leis físicas presentes no universo.

Hoje se considera que a vida tenha aparecido, em suas formas microscópicas, pouco mais de 3 bilhões de anos atrás, ou seja, por volta de 13 bilhões de anos após o Big Bang. Por que levou tanto tempo para surgir? Considera-se que para produzir a quantidade de elementos químicos indispensáveis à vida foram necessárias três gerações de estrelas. Efetivamente, os elementos pesados são criados por nucleosíntese apenas no interior das estrelas; quando elas morrem, esses elementos se espalham no espaço para dar origem a uma nova geração de estrelas. A duração da vida de uma estrela depende de sua massa e varia de poucos milhões de anos (para as de grande massa) a alguns bilhões de anos (para as de pouca massa). Mas é certo que são necessários por volta de 10 bilhões de anos para se produzir hidrogênio, azoto, oxigênio, carbono, e assim por diante. Repito que o universo é por natureza evolutivo e deveria evoluir até se tornar grande e velho antes que pudéssemos exisitr. Fiquei tentado a dizer “para que pudéssemos existir”, mas assim eu teria incluído o conceito filosófico de finalidade – que, como tal, escapa do campo da ciência. Para mim, isso nos levaria também a uma imagem de Deus criador que não é coerente com o nosso conhecimento sobre o universo criado.

O surgimento da vida no universo coloca naturalmente uma série de problemas científicos aos quais, para mim, ainda não foi dada uma solução adequada. Considerando que para o aparecimento da vida era necessária uma particularíssima sintonia (fine tuning) das constantes e leis físicas da natureza, poderíamos nos perguntar como, afinal, a vida pôde simplesmente aparecer. A vida, de fato, teria sido impossível se qualquer uma dessas constantes tivesse um valor diferente. Novamente, para encontrar uma explcação, somos tentados a recorrer a uma imagem, para mim equivocada, de um Deus criador que, por sua vontade livre, determinou as constantes naturais.

Mas nós existimos e nossa existência é intimamente ligada à matéria e à energia do universo de que fazemos parte. Nossos átomos estão em constante intercâmbio com os do universo, a ponto que 98% do nosso corpo se renova anualmente. Ao respirar, colocamos em circulação bilhões de átomos já reciclados nas últimas semanas de respiração de outros seres vivos. Nada daquilo que forma os meus genes existia há um ano. Tudo é renovado e regenerado a cada momento, atingindo a fonte da matéria e da energia que é o universo. Minha pele se renova todo mês e meu fígado, a cada seis semanas. Podemos dizer que, entre todos os seres do universo, somos os mais reciclados. Qualquer imagem de Deus, fonte universal da vida, deve responder a tais fatos científicos.

Refletindo agora sobre tudo que ocorreu ao universo a partir de seu início, podemos dizer que houve uma contínua transformação de enegia em formas sempre mais complexas de matéria. No início havia apenas energia; depois, com base naquela famosa equação de Einstein, a energia se transformou em matéria dando origem a quarks, átomos, moléculas, galáxias, estrelas, planetas, organismos prebióticos e, finalmente, o homem. Somos o resultado de um processo contínuo de transformação da energia do universo em formas cada vez mais complexas de matéria. Não faz muito tempo que comçamos a perceber que este processo não ocorre sempre de modo determinístico e ordenado, mas que em cada fase de seu desenvolvimento evolutivo também participaram o acaso e a imprevisibilidade.

Tudo isso leva a uma pergunta: a vida, como inteligência e autoconsciência, representa um fator importante para a evolução futura do universo? É uma questão que talvez poderia estar fora do campo das ciências naturais. Mas prefiro correr o risco ao recapitular as perguntas feitas em uma última questão, tendenciosa: existimos apenas para reciclar a energia na forma como ela nos é fornecida pelo universo, ou somos seres especiais, nos quais o universo encontra a possibilidade de passar da matéria ao espírito?

É neste quadro geral de um universo em evolução que se coloca a vida (e, com ela, também a nós) que eu gostaria de apresentar, em correspondência a uma nova cosmologia, a proposta de uma nova imagem de Deus criador. A novidade da cosmologia de que pretendo falar não pode ser bem compreendida sem recapitular a história que lhe deu origem. Nos séculos 16 e 17 era comum e persistente a ideia, já adotada pelos pitagóricos, de que o trabalho dos físicos era descobrir algo como um grande projeto transcendental encarnado no universo. Efetivamente, considera-se que um dos fatores essenciais que contribuíram para o nascimento da ciência moderna foi a teologia cristã da Criação e da Encarnação. A propósito da Encarnação, o conceito de Logos encarnado do qual fala o prólogo do Evangelho de João se revelou particularmente apropriado. Isso recuperava, de certa forma, os conceitos platônicos e pitagóricos do mundo das ideias eternas e do caráter transcendente da Matemática.

No entanto, o surgimento, no início do século, da mecânica quântica e da Teoria da Relatividade – e, mais recentemente, da dinâmica de sistemas não lineares –, contribuiu imediatamente para a introdução de conceitos científicos menos transcendentais. Por exemplo, os estudos sobre a dinâmica de sistemas não lineares deram origem a dois novos campos de estudo: a teoria do caos e a complexidade. A grande variedade de formas e estruturas existentes seja no mundo inorgânico, seja no orgânico, colocou à prova qualquer teoria que coloque como fundamento da Física uma série de leis determinísticas. Todavia, aplicando as leis da Física à análise matemática dos sisemas não lineares, obtém-se modelos matemáticos que permitem um conhecimento da estrutura das mudanças: mudanças, no entanto, das quais não é possível prever o resultado final, à medida que não é possível prever o efeito produzido por pequenas perturbações que se acumulam com leis não lineares. Definitivamente, o mundo sensível tem tanta riqueza a ponto de colocar em xeque a análise matemática mais sofisticada.

Diante da constatação do fato de que a vida existe no universo, podemos fazer algumas perguntas. Se tivéssemos conhecido as condições físicas do universo em expansão em um instante muito próximo ao do Big Bang, teríamos sido capazes de prever o surgimento da vida? Para mim, quem faz uma pesquisa honesta responderia que seria possível prever o surgimento e a exata natureza e intensidade das quatro forças físicas fundamentais que conhecemos. Mas não é verdade que a vida é resultado de tantas bifurcações, surgidas em obediência a uma termodinâmica não linear, que nunca teríamos sido capazes de prever seu surgimento, ainda que tivéssemos conhecimento de todas as leis da Física macroscópica e microscópica? E, diante disso, como devemos imaginar Deus, fonte universal de tal vida?

Embora a afirmação possa parecer muito sintética, acredito ainda assim que seja correto dizer que, de Platão a Newton, a disputa sobre a participação da matemática na compreensão científica do universo se desenvolveu inteiramente sob uma capa de religião. Ainda hoje ouvimos de alguns cientistas o refrão da descoberta da “mente de Deus”. Nosso trabalho é fazer uma tentativa séria tanto de avaliar essa longa história quanto de dar sentido aos seus ecos, que ainda ouvimos atualmente. Acredito que, na maior parte dos casos, com esse palavreado se queira designar a estrutura matemática ideal à qual correponde, segundo Platão, o mundo de sombras no qual vivemos. A “mente de Deus” seria uma teoria unificada que nos permitiria compreender todas as leis físicas e as condições iniciais do universo. Mas seria possível dizer que, no caso de haver tal teoria, teríamos também uma compreensão adequada da vida?

Na minha opinião, o conceito de “mente de Deus” da nova cosmologia não implica nenhum caráter de intencionalidade. Mas seria possível explicar a vida sem recorrer à intencionalidade? Reconheço o caráter bastante pretensioso destas perguntas; elas vão além da competência própria do cientista. Mas também penso que devemos nos precaver de uma forte tentação apresentada por essa nova cosmologia. Como já dissemos, na cultura da nova cosmologia Deus deve ser visto essencialmente, se não exclusivamente, como uma explicação e não como uma pessoa. Deus representa a estrutura matemática ideal, a “teoria de tudo”. Segundo essa cultura, Deus é explicação. Mas o estudioso de Teologia bem sabe, como todos os crens, que Deus é muito mais que isso e que a revelação na qual Deus revelou a Si mesmo no tempo é mais uma comunicação que uma informação. Ainda que descubramos a “mente de Deus”. não necessariamente teremos encontrado a Deus. Mas o Deus que se revelou a nós por meio de nossos ancestrais continua revelando o grande mistério de Sua realidade por meio de nosso conhecimento do universo criado por Ele.

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