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Izabel sã e salva em Shenzhen
Izabel sã e salva em Shenzhen| Foto:

Ni Hao,

Conforme prometido no último post, o texto abaixo é novamente da Izabel. Desta vez, ela descreve como foi sua viagem de Shanghai para Shenzhen.  Hilária, emocionante, imperdível!

Leitores, desejo a todos uma boa viagem, se é que isso será possível!

 

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A Viagem de trem de Shanghai para Shenzhen, por Izabel Ribeiro

Izabel sã e salva em Shenzhen

Izabel sã e salva em Shenzhen

Por mais corajosa que eu seja e, aqueles que me conhecem mais intimamente sabem o quanto isso e verdadeiro, essa é uma experiência que não recomendo.
Viajar para qualquer país do mundo, para que a viagem seja bem sucedida, é preciso fundamentalmente falar inglês. Não aquele inglês escolar, mas um inglês fluente que possibilite o reconhecimento de sotaques, variações linguísticas regionais, gírias, etc.
Fruto de um equívoco, a viagem de trem entre Shanghai e Shenzhen foi a experiência mais intensa, mais emocionante e inesquecível que vou levar da China. Foi a China que pude ver face a face literalmente e, foi também a China que olhou para mim.

Comprei a passagem com antecedência e, por tratar-se de um trajeto de 18 horas, escolhi um assento leito. Como tinha a intenção de olhar pela janela a maior parte do tempo, escolhi um lugar no topo. Primeiro engano. O topo é o leito que não tem visão de nada.

No dia seguinte fui para a estação ferroviária com muita antecedência para evitar qualquer erro e, a cada meia hora, lá estava eu abordando um funcionário para saber o que eu tinha que fazer. Eles esticavam o braço numa direção e diziam “não sei que não sei que la yah”.  

Interferência da blogueira: Assim como nós colocamos um hãhã, ou um no fim das nossas frases, os chineses colocam o yah, ou ne.

Eu voltava, sentava e esperava. Mais um pouco, a cena se repetia. A hora chegando, e, nada de mudar a informação. Até que vi que a hora já tinha chegado e eles me diziam que eu tinha perdido o trem enquanto, no meu inglês precário, parecia que eles estavam dizendo que o trem estava atrasado.

Mas até esse fato me foi favorável porque eles puderam perceber que só o “não sei que, não sei que la yah” comigo não funcionava.

Então uma funcionária gritou para a estação inteira escutar: “fulano ah, não sei que, não sei que lá, essa Lao ren yah” . (Lao ren é pessoa velha em chinês). Apareceu então um fulano que ficou no lugar dela e ela praticamente me segurando pela mão, me conduziu até a bilheteria para fazer a troca da passagem.

Na bilheteria novo mico linguístico. A pessoa que vende passagem se comunica por um sistema de microfone que deforma mais ainda qualquer som em qualquer língua. Eu consegui ouvir mais ou menos algo como – sentado.

Respondi ok, ok. Ela repetiu algo mais ou menos como – deitado. Respondi ok, ok.

Ela já alterada disse “sentada?, deitada?”. Respondi ok, ok. Dai ela falou um monte de coisa e, no meio, ouvi um “tomorrow”.

Pensei: nem fodendo!  Disse pausadamente: I NEED TO GO TO SHENZHEN TODAY. Ela falava um monte de coisa e eu dizia ok, ok, e pensava: _ Me dá qualquer merda e pronto!

Esse “qualquer merda” resultou realmente numa merda de passagem no último vagão da classe econômica. Vi logo que o negócio ia ser punk porque ela me devolveu quase a metade do que eu tinha pago pela passagem leito que perdi. Na China, você não pode parar para pensar porque atrás de você, na fila, tem um trilhão e trezentos milhões de chineses.

Nova interferência da blogueira: Isso é o que a China faz com a gente. Até esse doce de senhorinha, fofinha e gentil, precisa mandar um f-se! para poder aliviar a tensão por não estar entendendo nada. Eu te entendo, Izabel! Eu te entendendo!

Mas aí, foi tudo de bom.

A funcionária que me conduzia teve então o cuidado de me levar praticamente na boca do embarque, mas lá também gritou para a estação inteira escutar: “fulano ah, não sei que não sei que la essa Lao ren yah”. Entendi tudo. Era: quando o trem chegar, você da uma atenção especial para essa Lao ren yah.

A essas alturas, todos os olhares da estação se voltavam para mim. Por dois motivos: eu era a única cara pálida naquele oceano oriental e era a Lao ren que tinha perdido o trem.

Tive sorte. Só precisaria esperar 2 horas pelo próximo trem.

Nesse intervalo, algumas pessoas se aproximaram e me abordaram com muita simpatia. Teve um senhor que estava com a família, veio puxar prosa. Falava inglês muito bem. Viu minha passagem, disse que também ia para Shenzhen, quis saber por que eu ia na classe econômica. Entendeu tudo que eu contei sobre a trapalhada que tinha feito. Dai ele ia até seus familiares e contava o que eu tinha dito. Voltava e continuava a conversa. Achou meu nome bonito e disse que a presidenta Dilma esteve na China recentemente. Por fim, disse que seu tivesse qualquer problema ou se precisasse de alguma coisa, que ele estaria à disposição para me ajudar.

Chegada a hora, lá fui eu arrastando minha malinha no meio daquele oceano humano. Quando pus o pé no vagão, entendi tudo. Aquilo fedia a comida azeda, urina, fezes, suor e outros aromas do gênero. O bagageiro em segundos transbordava de sacolas, malas, maletas, embrulhos, caixas de papelão e tudo o mais. O jeito era enfiar o sobressalente debaixo dos bancos, que também em pouco tempo ficaram abarrotados. E todos me olhavam com a interrogação de o que estaria essa Lao ren fazendo ali naquele espaço tão deles.

Essa fixação foi atenuada quando bem ao lado da minha fileira sentou-se um casal bem jovem de negros muçulmanos, a moça linda de curvas generosas com a cabeça coberta por um turbante cor de laranja. Não tinha pra ninguém. Até eu fiquei hipnotizada pela cena.

Quando entrei no trem, pareceu- me que ali estavam pessoas de diversas localidades. Tinha gente de terno, de blaser, tinha roupa de camuflagem de exército, bermudas, babadinhos, rendilhas, jeans, seda, lycra, enfim, o mundo fashion representado em todos os estilos.

Assim que o trem se pôs em movimento parece que alguém tinha disparado o sinal de largada para comer. Era um tal de abrir sacolas e garrafinhas e frutas e doces e macarrão e bolachas, pães, etc, etc. Começou a me parecer que todos se conheciam. Trocavam comida, conversavam e se relacionavam como se a amizade viesse da infância. Até o casal de muçulmanos comia. Ele pegava comida entre os palitos e colocava na boca da esposa diante do vagão inteiro de olhinhos puxados arregalados.

Olhavam também para mim e diziam que eu precisava comer. Até ofereciam coisas.

Meu assento era próximo ao banheiro que tinha logo a seguir uma enorme lixeira onde descartavam os restos de tudo, e, bem ali, enquanto todos comiam, outros tantos caprichavam no “rrrrrrr-tof”, escarrando sem a menor clemência.

Depois do comer, começaram a dormir. Daí cada um se ajeitava da melhor forma, encaixando as pernas onde fosse possível e foi assim que a chinesinha da frente praticamente cruzou os pés no meu colo enquanto outro dormiu pesadamente no meu ombro. Eu que não sou dada a fotografar, registrei essa cena de intimidade inesperada.

Izabel em momento íntimo no trem.

Izabel em momento íntimo no trem.

 

Acho que esse compartilhar superou à dose de tolerância do marido muçulmano que levantou-se e saiu do vagão. Depois de uma meia hora quando retornou, ele me viu e imediatamente puxou conversa. Perguntou de onde eu era, para onde estava indo e disse que tinha conseguido lugar no vagão de leitos. Se eu quisesse, poderia tentar.
Agradeci e disse que estava bem ali onde estava. A verdade e que eu já estava irremediavelmente encantada por tudo e por todos ao meu redor.
Com a capacidade olfativa perfeitamente ambientada, já tinha assimilado todos os aromas e não percebia mais nada.

Só que, em algum momento, eu teria que ir ao banheiro certo? Certo.

Disputando espaço entre as pernas de uns e outros, consegui me deslocar até lá. O espaço é tão diminuto que até eu que sou miudinha precisei de habilidade física para me encaixar no compartimento. Aquilo sim precisaria de uma completa reforma e higienizarão para ser chamado de uma visão do inferno. Tenho certeza de que Satanás não toleraria nada semelhante nas suas instalações.

Quem assistiu “O Expresso da Meia Noite” poderá saber do que eu falo.

A privada turca, no chão, o chão por sua vez coberto por um líquido esbranquiçado de odor penetrante, semelhante à creolina, combinado com urina e fezes. Ao lado da privada um buraco onde havia uma haste, que parecia um cabo de vassoura e uma piazinha. Tudo estava lambrecado, viscoso, melequento e meu malabarismo consistia em equilibrar o balanço do trem e a tentativa de não encostar em nada.

Mais tarde entendi pra que é que servia aquele “cabo de vassoura’”. De tempos em tempos, vinha lá um serviçal do trem pegava aquele cabo e socava tudo, como se estivesse desentupindo, jogava mais uma dose de desinfetante, a creolina, e estava tudo certo.

Quando isso acontecia eu rendia graças à vida por me proporcionar essa experiência sem me chocar, sem sentir nojo, sem qualquer mal estar. Apenas assistindo a tudo e usufruindo da parte que me cabia nesse latifúndio.

Enquanto isso, a janela ia descortinando a China que eu conhecia do cinema. Vilarejos, rios, pontes, templos, arranha céus, monumentos, imagens de Buda e muita, muita paisagem rural onde os campos de arroz pomares e a horticultura parece dividida com régua, tamanha simetria entre canteiros e culturas.

Imagens bem cinematográficas de camponeses com aquele chapéu cônico, e uma paisagem abundantemente recortada por cursos de água, em tanques, pequenos e grandes lagos, riachos, rios largos de intensa atividade de navegação. Algumas localidades, apesar da intensa atividade de construção civil, mais pareciam cidades fantasmas que prédios destinados à povoação da região.

Depois que acordaram, os chineses voltaram a comer.

Agora era intenso o tráfego de vendedores de comida industrializada, comida preparada, bebidas, frutas, celulares, baterias e uma que eu não consegui saber do que se tratava. Cheguei a desconfiar que ela vendia ou alugava toalhas úmidas para higienizarão das mãos, do rosto e sabe-se lá o que mais. Mas não posso garantir o que era.

E o que eles vinham gritando: “não sei que, não sei que la yah!”. Acho que nem os chineses entendiam o que era, mas quando chegava perto a gente via e escolhia as coisas.

Foi anoitecendo e o vagão transformou-se num cassino. De todas as partes surgiam baralhos e magicamente surgiam também os espaços destinados às mesas de jogo. Ora eram nos assentos, ora sobre as malas, enfim, quem podia continuava sentado, quem não, em pé ou acocorado, todos participavam do jogo como quem se reúne em torno de um ritual sagrado.

Até tentaram me envolver, mas fiquei só como expectadora. A verdade e que já me consideravam da tchurma.

Depois da jogatina, voltaram a comer e a dormir. Os escarradores de plantão não deram trégua em nenhum momento. Eram incansáveis!

Também dormi. De vez em quando eu acordava, mas voltava a dormir, até que um deles bateu numa bandejinha como quem bate na porta. Estava me acordando para dar bom dia e anunciar o início das atividades matinais.
Que era o que? Comer.
Antes disso vi que muitos deles iam até a pia lavar o rosto, molhar o cabelo e escarrar. Teve um que sacou de um espelho e um barbeador e ali mesmo, no banco na minha frente, caprichou na toalete.
Com o clarear do dia, novamente surgiram as paisagens agrárias e as urbanas. Da mesma forma que as culturas agrícolas parecem desenhadas com régua, a arquitetura de cada local parece dividida por estilos, tamanhos, cores e materiais de construção. Ora telhados pontudos, ora antenas que mais lembram minaretes, ora painéis de energia solar como se fossem pergaminhos desenrolados sobre os tetos, ora prédios altíssimos envidraçados, ora muitas cores, ora um colorido tão igual que beira a monotonia, ora, ora, ora…

De repente comecei a ouvir uma gritaria e pensei tratar-se de alguma desavença, porque uma mulher gritava “não sei que, não sei que la ah” , mas era uma vendedora de coxas de frango em embalagem fechada a vácuo. Em segundos todos os ocupantes do vagão ostentavam nas mãos aquelas coxas que eram devoradas com um apetite pantagruélico.

O trem vinha parando de estação em estação, creio que umas 20 entre Shanghai e Shenzhen, e aqueles que, primeiro me pareceram estranhos reunidos, depois me pareceram até parentes tamanho grau de relacionamento; todo esse tecido familiar foi se esgarçando a cada estação quando muitos dos que vinham ao nosso lado iam desembarcando. Cheguei a sentir pena quando o chinesinho que dormiu no meu ombro desembarcou. Era como se estivesse me separando de alguém muito querido.

Enfim, 18 horas passadas, cheguei ao meu destino.

Já nos despedíamos como parentes.

Durante 18 horas eu vi a China como ela realmente é. Pessoas que certamente eu nunca mais encontrarei, mas que estão impressas na minha memória e no meu coração. Pessoas inesquecíveis e que tenho certeza, jamais me esquecerão.
Era essa a China que eu vinha buscar e é essa a China que trouxe comigo para o Brasil.
Tenho todos os motivos para ser muito mais que grata à vida. Sei que aquele equívoco na estação de trem foi muito mais que isso. Foi uma escolha!

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再见!

zaijian

 

Se quiser falar comigo, envie e-mail para christianedumont@hotmail.com

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