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O que segura o preço do pãozinho, apesar das bombas na Ucrânia? Não é o governo
| Foto: Divulgação / Sindipan MT

O fim do acordo mediado pela ONU para escoamento de grãos da Ucrânia pelo Mar Morto e a saraivada de mísseis russos lançados sobre armazéns portuários já fizeram a cotação do trigo na Bolsa de Chicago acumular alta de 16% em dez dias. Se fosse com a soja, a transmissão desse impacto para o mercado brasileiro seria imediata, devido à liquidez da commodity e ao papel do Brasil como maior exportador mundial.

Quando se trata do trigo, no entanto, as oscilações em Chicago podem demorar para repercutir no hemisfério Sul ou até serem minimizadas por outros fatores, regionais e sazonais. É o que está acontecendo agora, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.

Em fase inicial de colheita, a Rússia tem 47 milhões de toneladas de trigo para exportar, e a Ucrânia, mais 10 milhões. Quase nada desse trigo, no entanto, vem para o Brasil, que tradicionalmente depende da Argentina para cobrir sua insuficiência na produção do cereal.

E no próximo ciclo a Argentina deve voltar com a safra normalizada (19 milhões de toneladas), após sofrer com a seca e colher apenas 12,6 milhões de toneladas na temporada 2022/23. A própria produção brasileira será novamente recorde, se aproximando da autossuficiência: colheita prevista entre 10 e 11,3 milhões de toneladas, contra um consumo de 12 milhões de toneladas.

Farinha de trigo responde por um terço do preço do pãozinho

O cenário é totalmente diferente do que ocorria há um ano, quando estourou a guerra da Ucrânia, e a cotação do trigo chegou a bater em US$ 12 o bushel em Chicago (hoje está em US$ 7,60). O preço da tonelada de trigo no mercado doméstico, que havia chegado a R$ 2.300,00, atualmente se equilibra em R$ 1.400,00.

No início do conflito, a Argentina atravessava severa estiagem, diminuindo a oferta do grão, uma combinação que fez o preço do pãozinho ser reajustado nas padarias brasileiras entre 12% e 20%. A farinha de trigo responde por cerca de um terço do preço final do pão.

Dessa vez, não há justificativa para reajuste imediato. Pelo contrário, no momento o viés é “baixista” no mercado brasileiro, segundo Elcio Bento, analista da agência Safras e Mercado.

“Inclusive está caindo o preço. Os preços da farinha subiram e não devolveram toda a alta que a gente teve no grão. Então, os moinhos estão com margens que permitem reduzir os preços de farinha hoje. E como tem safra se aproximando, por enquanto não tem nada que diga que os preços da farinha vão subir, a menos, claro, se começar uma escalada de recuperação no mercado internacional. Mas é um período em que tem muito trigo para sair de lá (Rússia e Ucrânia), e existe boa oferta de trigo em qualquer lugar do mundo”, pondera.

Além de Rússia e Ucrânia, a França, maior produtor de trigo do continente europeu, também começa a colocar no mercado uma boa safra. As colheitas avançam ainda pelos EUA, Canadá, Índia e China.

Instabilidade nos preços rende dinheiro para o Kremlin

Se o presidente russo já não conta mais com o efeito surpresa para impactar os preços dos grãos, ele segue calculando cada passo para causar máximo de danos às receitas da Ucrânia com exportação. Ao bloquear o trigo ucraniano, Putin procura tomar para si o mercado do país vizinho, ao mesmo tempo em que colhe os benefícios de qualquer alta no mercado global. Sozinha, a Rússia responde por 22% de todo o comércio internacional de trigo.

Numa carta de boas-vindas aos chefes de Estado que vão participar nesta semana do Fórum Rússia-África, em São Petersburgo, Putin escreveu que, “apesar das sanções, a Rússia continuará a trabalhar com empenho para organizar embarques de grãos, fertilizantes e outros alimentos para a África”, e que substituirá os embarques ucranianos perdidos tanto “em termos comerciais como humanitários”.

Rússia domina mais de um quinto das exportações mundiais de trigo
Rússia domina mais de um quinto das exportações mundiais de trigo| Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

O economista Igor Lucena, membro da Associação Portuguesa de Ciência Política, acredita que a tensão atual está relativamente precificada. Ele estima em médio prazo um teto de 20% para qualquer novo aumento, a depender não só da guerra, como de problema climáticos.

“Todos os membros da cadeia produtiva sabem ou têm uma visão do que fazer nesse contexto de guerra. Por outro lado, a gente está sofrendo os efeitos do El Niño, que destruiu várias plantações e vai continuar destruindo, elevando os preços. Um efeito líquido disso poderá ser o aumento desses produtos em até 20%, impactando o pão francês, a massa de bolo e até o custo de alimentação das crianças”, avalia Lucena.

Moinhos e produtores: poucos negócios com trigo no momento

Se o ambiente internacional ainda guarda alguma volatilidade, no mercado doméstico predomina relativa calmaria, e tanto o produtor rural como os moinhos se mantêm precavidos, sem pressa para vender por um lado, nem para comprar, do outro. “O produtor está na defensiva, pedindo um preço maior, e o moinho não quer pagar, porque não está claro que esse preço continuará subindo no mercado internacional, apesar de toda a incerteza”, valia Elcio Bento.

Se houve um efeito nítido nos últimos dias, esse teria sido o da estabilização dos preços no mercado doméstico. “Pode ser que essa firmeza se sustente por um tempo até a chegada da safra. Não vejo voltar àquele ambiente de velocidade de preços como aconteceu antes, quando a guerra era algo totalmente novo, e a gente estava a descoberto. A situação de pré-colheita hoje nos dá garantia de fornecimento, e isso acaba equilibrando os preços”, resume Daniel Kümmel, CEO do Moinho Arapongas e presidente do Sindicato da Indústria do Trigo do Paraná.

No trigo, o Brasil é apenas o 14º maior produtor mundial, num ranking liderado pela China (140 milhões de toneladas), União Europeia (139 milhões de t.), Índia (110 milhões); Rússia (81,5 milhões); Estados Unidos (45,1 milhões) e Canadá (37 milhões). Nas exportações, quem lidera os embarques é a Rússia (21,69%), seguida pela UE (18,12%), Canadá (13,11%) e Austrália (13,11%). O Brasil é o décimo maior importador do cereal, em ranking liderado por Egito, Indonésia e China.

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