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Comunismo
Comunismo| Foto: Gazeta do Povo com Midjourney

Há uma relação entre linguagem e democracia muitas vezes inexplorada, mas com implicações importantes. O uso de determinadas expressões para estigmatizar o opositor produz efeitos sobre o debate público com consequências nefastas sobre instituições e mesmo em relação às conexões interpessoais no campo privado. O diálogo necessário à manutenção de um ambiente democrático pode sofrer, assim, impacto relevante, determinando o futuro de questões importantes para o país.

Dois dos termos mais utilizados nos últimos tempos no Brasil, quando há discussão sobre questões políticas, são “fascista” e “comunista”. Evidentemente, o uso de tais expressões, carregadas de peso histórico, faz com que o interlocutor seja rotulado como alguém com características extremamente nocivas ao convívio democrático. Dado que o debate é a forma mais adequada de demonstração de diversas visões de mundo, de forma a canalizar eventuais conflitos de modo civilizado para alguma forma de consenso, a tentativa de atribuir característica inerentemente negativa ao indivíduo com quem está debatendo constitui uma forma desleal de vencer o embate argumentativo, com consequências deletérias ao tecido social.

Afinal, uma vez que o outro praticamente personifica o mal, como encontrar qualquer ponto de contato na tentativa de resolução de algum problema? Mais ainda: como manter relação pacífica na vida cotidiana com alguém que, supostamente, defende valores ofensivos à dignidade humana? Nota-se, portanto, que a dissolução dos laços sociais por tal nível de polarização linguística pode produzir efeitos bem mais duradouros do que muitas vezes se imagina.

Importante observar ainda que o uso indiscriminado de termos com grande estigma produz um efeito colateral perigoso: a perda de sentido. Chamar alguém de fascista, nazista ou comunista, por exemplo, faz com que os eventos trágicos ligados a tais fenômenos históricos sejam, de algum modo, banalizados. O mesmo comentário vale para o termo “extrema direita”, usado com estranha facilidade em tempos recentes no Brasil e no mundo. Será que todas as figuras populistas surgidas no cenário político ultimamente merecem tal qualificação? Ou será que o uso inadequado de tal nome pode levar a sociedade a abrandar o peso de tal atributo caso a figura política em questão não se mostre um risco tão grande assim à democracia?

Há que se observar, ademais, que adjetivar o opositor para inviabilizar o debate, além de trazer riscos ao ambiente democrático, demonstra, em última análise, certa sinalização de virtude. Afinal, se o interlocutor representa a personificação do mal em termos políticos e sociais, o agente acusador passa a ser, teoricamente, alguém mais elevado sob a ótica axiológica.

Em um debate com base dicotômica em termos de valores, no qual uma parte julga-se moralmente superior à outra, o campo para encontrar consenso praticamente desaparece e a razão política, normalmente baseada na técnica de encontrar a solução possível, passa a basear-se na lógica do “tudo ou nada”. Evidentemente, os efeitos potenciais para a democracia são sombrios.

A linguagem usada no debate público, portanto, deve ser observada com cuidado. Em época de rede social e uso de recortes de diálogo para disseminação na internet, a tentativa de humilhação do interlocutor e finalização do debate com o uso de algum termo forte pode render frutos a curtíssimo prazo, mas é péssimo para a democracia, a qual, necessariamente, deve ser construída com visão de longo prazo.

Enquanto o ambiente democrático demanda uma lenta e laboriosa construção de pontes com quem pensa de forma diversa, o uso sem cautela de adjetivações durante o debate tem o condão de destruí-las. Há, nesse uso, certo autoritarismo que usa as vestes da democracia, ganhando o apoio de incautos que são atraídos pela utilização de tais expressões. O ambiente democrático saudável é feito sem espetáculo, com base em trabalho diuturno e consistente de pessoas moderadas. Não parece emocionante em uma civilização imagética como a contemporânea, mas é o caminho trilhado com sucesso historicamente.

Elton Duarte Batalha, professor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), é advogado e doutor em Direito.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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