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O que parecia apenas um mal-entendido da lei menor diante da Constituição sobre os limites da liberdade de expressão, no caso das biografias, tornou-se aqui um tsunami jurídico, cultural, político e até moral. O Brasil letrado se pergunta se elas devem ser liberadas.

O fato de o país, hoje, só permitir biografias chapas-brancas, com autorização expressa do biografado ou seus descendentes, diz muito sobre o espírito de "concessão da liberdade" que nos marca. O direito à informação corre no Brasil um risco permanente e real. Este direito básico seria uma das únicas áreas da vida brasileira que não dependeriam de intermediários, jeitinhos, dízimos, amizades. E é espantoso que até o mais inteligente dos litigantes – entre gênios da cultura popular brasileira, como Chico e Caetano – sacará o detalhe da exceção para justificar a fechadura geral, como se todos embarcássemos no mesmo avião, em que o canivete no bolso de um único passageiro justifica a censura prévia de milhões de outros. A ideia de que as pessoas devem ser livres e universalmente responsáveis por si mesmas parece insuportável à nossa cultura. É preciso, sempre, controlá-las previamente.

O horror à liberdade das biografias se concentrou em torno de grandes artistas da mídia, um detalhe sintomático de um país que chegou antes à televisão que ao livro, este objeto desconhecido e perigoso, talvez capaz de enriquecer criminosos por estelionato biográfico. Porque os artistas de palco – tendo uma vida escancaradamente pública desde o primeiro recital infantil, da qual jamais reclamaram – fazem de si mesmos a produção controlada de um espetáculo. Oculta-se o que de fato são: parte inseparável da vida social, cultural e histórica do país, com a qual interagem numa permanente alimentação de via dupla.

E as biografias são um gênero fundamental da historiografia em todo o mundo desde que a escrita mudou o patamar da civilização. Elas incluem a complexa rede de significados sociais que dão sentido aos personagens de destaque em todas as áreas, multiplicando e relativizando os instrumentos de compreensão histórica. Mas, entre nós, são entendidas pelos artistas apenas como um outro show, um cedê, uma performance monitorada. Confunde-se a própria vida, quando submetida a um olhar biográfico de fora, com um produto de consumo, com preço e design cuidadosamente planejados. Assim, um único olhar é permitido, para o qual se pagaria ingresso ao artista, como num espetáculo.

O preço desta visão tacanha e mesquinha é alto – somos, talvez, o único país do mundo civilizado em que é preciso pedir licença para biografar presenças centrais da vida pública. E isso quando contamos com biógrafos de grande talento e competência, que enriquecem substancialmente nosso olhar sobre a história.

Mas faz sentido: a história brasileira nunca foi um objeto dócil de estudo – fiel à sua origem, vivendo nas sombras, está sempre diligentemente ocupada em ocultar a si mesma.

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