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| Foto: Max Haack/Agecom

Com a independência intelectual que até os desafetos reconheciam, dizia Wilson Martins, o grande intelectual da história do Paraná: “Não comento autores, comento livros”. Mesmo assim, e sempre de forma elegante, o crítico gostava de contar casos e curiosidades da vida literária, até mesmo de satirizar aqueles a quem muito respeitava. Gilberto Freyre era o preferido.

A vaidade dos escritores é muito conhecida. Mas nenhum deles tinha o ego tão inflado quanto Gilberto Freyre. Contava Wilson Martins que certa vez o “Mundo” viajou desesperado para Recife. Com todos os seus problemas ecológicos, o “Mundo” em crise resolveu se aconselhar com Gilberto Freyre. Bateu palmas naquele belo portão de ferro colonial que o pernambucano tinha na sua casa em Apipucos. A senhora de Gilberto Freyre apareceu na janela, olhou, viu aquele tipo mal enjambrado, roupa suja, sapatos fedidos, barba por fazer, e já foi dizendo: “Hoje não é dia de esmola, não! Esmola só na segunda-feira”.

“Quem é que vai acreditar que isso aqui [o Paraná] é o Brasil?”

O mal enjambrado implorou: “Mas não, minha senhora, eu não sou um mendigo, eu sou o ‘Mundo’! E vim consultar com dr. Gilberto Freyre sobre os meus problemas”. “Que problemas?” “Todos, todos: a fome, as guerras, o meio ambiente, a caça às baleias, a crise energética.” Mais calma, disse a dona de casa: “Bom, eu vou ver lá dentro!” Entrou. Dali a pouco, voltou e disse não: “Não! O Mestre não pode receber ninguém! O Mestre está lendo Casa Grande & Senzala!”

O “Mundo” insistiu, e de tanto insistir Gilberto Freyre o recebeu. Mas o recebeu com o dedo apontando em cima de uma linha da sua própria obra, na passagem que estava lendo em Casa Grande & Senzala. E dessa maneira o “Mundo” foi atendido em Recife.

Foi lendo a grande obra do Mestre de Apipucos que Wilson Martins teve a ideia de escrever Um Brasil diferente. Apesar da admiração pelo pernambucano, Wilson não se conformava com um dos mandamentos de sua nacionalidade: “O verdadeiro Brasil é a Bahia. Quem não viu a Bahia não viu o Brasil”, pregava Gilberto Freyre.

De 1933 em diante, depois de lançado o livro que reinterpretou o Brasil, todo turista era levado para o Recife, porque lá é que estava o Brasil dançando frevo. O que fazia algum sentido e levava o “Bicho do Paraná” a se perguntar: “Quem é que vai acreditar que isso aqui [o Paraná] é o Brasil? Está cheio de gente loura, tudo com cara de gringo, os nomes mais estranhos, impronunciáveis, nenhum deles correspondendo, realmente, à ideia deste Brasil tradicional”.

Depois de esmiuçar Casa Grande & Senzala, Wilson Martins ficou ainda mais convicto de que o Paraná representava um processo civilizatório bem diferente do processo clássico da formação brasileira, não correspondendo a qualquer daqueles caracteres que o pernambucano havia proposto na sua grande obra.

Numa entrevista que nos concedeu em seu apartamento aqui em Curitiba, Wilson Martins comparava o jeito de dormir dos nordestinos com os sulistas: “Para Gilberto Freyre, a coisa mais estranha era alguém dormir numa cama. A cama, para ele, era um objeto estranho. Provavelmente aceitável na Europa, nos Estados Unidos. Mas, no Brasil da Bahia, brasileiro legítimo dorme na rede! Agora eu pergunto a vocês: quem é que, no Paraná, dorme na rede, realmente?”

Na época não respondemos a pergunta do professor. Quase 30 anos depois, os paranaenses continuam dormindo do mesmo jeito. Os muitos migrantes, um ou outro forasteiro talvez quebrem a regra. Quem sabe Marcelo Odebrecht, o baiano que caiu na rede do juiz Sergio Moro.

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