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 | Foto de Priscila Forone
| Foto: Foto de Priscila Forone

Raciocine. "Poty Lazzarotto nasceu no Cajuru. Logo, existe uma salvação para os 1001 pichadores que operam naquelas bandas, certo? Foi mais ou menos essa a lógica usada pela professora de Artes Marinês Veiga diante de um daqueles problemas que a tiravam do sério – a grafitagem selvagem nas paredes do Colégio Estadual República Oriental do Uruguai. A escola é um patrimônio da região – mas seus muros são terra de ninguém. Avante! Poty no lugar dos sprays e das tags.

Aos fatos. O República do Uruguai tem seis décadas de serviços prestados à educação. Salta aos olhos o arco algo romântico na fachada, dando ao prédio um astral de filme de época. Parece que a qualquer momento vai aparecer um bando de colegiais trajando saia plissada, meias três-quartos e cantando "Dominique, nique, nique..."

Não é bem assim, claro. Mas o colégio guarda encantos que o tempo não apaga. A começar pelo nome com o qual foi batizado, provavelmente um gesto tresloucado para adular alguma autoridade de Montevidéu que passou por Curitiba. Até hoje, os alunos ostentam no uniforme uma tremulante bandeirinha do Brasil e outra do Uruguai, o que leva os desavisados a imaginar ser ali uma espécie de zona franca entre nações vizinhas.

Quem dera. À revelia de seu it nostálgico, a escola está na mira dos rebeldes. Encare um tour ao velho Cajuru de guerra "e verás". Siga pela Avenida Maurício Fruet e faça o primeiro contorno na altura do Terminal do Capão da Imbuia. Entre na Avenida Affonso Camargo e siga toda vida. Vá devagar. Quando vir o trecho em que parece ter chovido um toró de litros de tinta caídos do céu, é ali. Sinta-se bem-vindo, se puder.

A tal curva é um dos mais impressionantes conjuntos arquitetônicos da capital dedicados ao ensino. Além do República do Uruguai, o quarteirão abriga o Colégio Estadual Maria Aguiar Teixeira e o Centro de Artes Plásticas Guido Viaro. Circulam diariamente no pedaço nada menos do que 3,5 mil estudantes, formando um daqueles cenários que fariam estufar o peito do ultranacionalista Afonso Celso, autor de Porque me ufano do meu país.

Em vez de prestar atenção na estudantina, que remédio, os olhos se fixam é na pichação em escala industrial. Tem de tudo: dos ternos "Carol, te amo", passando pelos safos "os bad boys, há, há", culminando nos populistas "Capão para todos nóis". Além das duas escolas alvejadas sem piedade, há um muro de 325 passos, bem na frente, convertido num documento arqueológico, uma Gruta de Lascaux. Ali, gangues rivais demarcam território, uma sobre as outras, cravando as letras de seu abecê. Seria até bonito se não fosse tão sádico. A estima dos alunos desce aos infernos. A curva da Affonso dá pena.

Tanto os professores do Uruguai quanto os do Maria Aguiar consideraram em seus colóquios que as tags – nome dado à caligrafia de cada gangue – são uma linguagem dos jovens, quanto mais os do Cajuru, sujeitos à rotina sensabor das periferias. A moçada picha, logo existe. Mas dar passe-livre para as tintas equivaleria a fazer da salas de aula uma extensão da guerrilha urbana.

Muita calma nessa hora. No Maria Aguiar – um edifício com frontão de azulejos amarelo-psicodélicos – os diretores Vera Zanotto e Alexandre Torrilhas chamaram o pessoal da ONG Iddhea para fazer oficinas de grafite com a gurizada. Impagável. Do lado de fora ainda reina o pandemônio: nenhum azulejo foi poupado dos jatos pretos. Já do lado de dentro, portas e paredes viraram telas gigantes para aprendizes de grafiteiros.

No República do Uruguai – bem, o milagre é da Marinês. Para conter a fúria das gangues, a professora mostrou à turma as paisagens de menino desenhadas por Poty, nas quais aparece se equilibrando na linha do trem. Mais Cajuru, impossível. Deu certo. Aos poucos, as paredes disputadas em noites de arruaça viraram painéis para reprodução livre de algumas obras de Lazzarotto.

"Onde tem grafite eles não picham. Um mistério", diz a diretora Karime Farhat. Hoje tem até uma bicicleta desenhada no pátio. É lúdica e revolucionária, um xodó. Acho que Guy Debord, guru dos pichadores de outrora, aplaudiria. As bikes e os trilhos de Poty lembram aquele bordão que varreu o mundo em 1968: "A imaginação no poder".

Que bons ventos façam a curva do Cajuru.

jcfernandes@gazetadopovo.com.br

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