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| Foto: Benett/

O balneário, no inverno, deixa de ser nosso. Ou melhor, a ilusão de que a praia nos pertence se desfaz. Ao menos por um ou dois meses de tempo ruim. Eu até que gosto, aguento firme. Da minha sacada no quinto andar, admiro a serenidade dos casarões vazios, com toda a sua opulência desabitada. No frio, o litoral é como um gancho de rede avulso, desocupado. Um anzol sem isca visível. Só o mordem os peixes mais metafísicos.

Manhã de neblina, mal consigo enxergar o Morro do Espia Barco. Apesar disso, é dali que vejo surgir o bando de urubus. Nem tento contá-los, são muitos. Voam baixo entre os nossos prédios, na evidente intenção da aterrissagem, deslizando por um funil de vento e graciosidade.

Pousam ao redor da piscina de uma mansão vizinha, fechada, de muros eletrificados. Frequentadores de um clube exclusivo, alguns se debruçam para beber água, outros alongam as asas para secar ou exibir as penas, assumindo uma postura aristocrática de desdém. Tenho a louca impressão de que se entregam a um tipo vingativo de terapia grupal. Meia hora depois, parecendo aliviados, levantam voo e se dirigem à beira-mar.

Estamos sempre tricotando, o dia inteiro, só que cada um à sua maneira

Começa a garoa. A orla deve estar deserta e decido seguir os urubus. Gosto da ideia de passear na Praia do Cristo, sozinho e de guarda-chuva. Não resisto a essas modalidades surreais de turismo, e é para lá que eu vou agora, bater ponto no meu banco favorito. Fica diante de uma grande saída de esgoto, onde várias garças brancas se reúnem para pescar, em meio ao lixo e à espuma colorida que aos poucos vai matando a restinga.

No banco, encontro uma senhora molhada, tricotando na chuva. Bom dia, eu a saúdo, tudo bem? Tranquila, ela responde que sim, e logo me pergunta se gosto de tricotar. Digo que isso é algo que não sei fazer, mas ela ri da minha inocência, e afirma que todo mundo sabe tricotar, ora: estamos sempre tricotando, o dia inteiro, só que cada um à sua maneira. Sendo assim, respondo, adoro tricotar, e minha resposta a faz sorrir.

Sento ao seu lado, pondo meu guarda-chuva à sua disposição. Ela recusa a oferta. Uma garça apanha um peixe minúsculo, pouco substancioso, e aquilo me incomoda. Acho absurdo elas pescarem ali, no esgoto, um bando de garças tão imponentes, e comento isso com a tricoteira. A senhora sorri pela segunda vez, e me diz que todos estamos pescando no esgoto. Cada um à sua maneira.

Um barco pesqueiro vem saindo do mar, rebocado por um trator barulhento. É estranho, mas as aves marinhas daqui não mais acompanham os barcos, não me perguntem por quê. Só sei que as gaivotas permanecem todas no chão, impassíveis, à margem do esgoto, como se à espera de peixes cada vez menos frescos. Metafísicos, quem sabe.

Desço à areia para espiar a carga do barco, mas me distraio ao avistar, a distância, um homem que, caído nas marolas, luta para fazer decolar uma pipa de kitesurf, ao mesmo tempo em que busca, sem sucesso, encaixar os pés numa prancha. O vento lança seu equipamento contra as ondas, e a pipa sobe e desce com violência, instável demais. O homem passa dez minutos sem se mover, num esforço brutal e solitário, preso àquela batalha contra os elementos e a tecnologia, agarrando-se à barra da pipa como se daquilo dependesse a sua sobrevivência.

Os urubus voam sobre ele, talvez caçoando de suas pretensões, mas eu o aplaudo. Um homem pequeno à beira-mar, brigando com a gravidade, fisgado por uma pipa gigante, numa praia que não é dele. No fundo, mesmo no chão, mesmo imóvel, ele já está voando. Todos já estamos voando, cada um à sua maneira.

A minha é entre dois ganchos de rede.

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