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Há no Batel um lugar onde a noite é mais escura. Fica na Presidente Taunay. É uma escuridão pontual, cinco metros de calçada, só isso, entre a Comendador e a Dom Pedro II. Apesar do bom funcionamento dos postes ao redor, impera por lá uma pequena sombra circular, mais densa que o normal, onde fui interpelado por uma moça incomum.

Não a descreverei aqui, e nem ficaria bem. Qualquer descrição de sua figura me forçaria a falar desta ou daquela curva de suas pernas, ou da qualidade de seu decote. Ela estava quase nua, de minissaia e chinelo, apesar do frio moderado da noite. Sobre os ombros, trazia uma pele branca, sei lá de que animal; o resto de si, cobria com a própria pele. Deixo a vocês a aventura de imaginá-la. Para complicar as coisas, porém, segue uma pista de sua idade: talvez não chegasse aos 18.

Ao me chamar, não usou as palavras “tio”, “amigo” ou “cara”, mas a expressão “por favor”. Sua voz revelava uma educação formal, e seria fácil supor que vinha de um lar endinheirado. A moça se desculpou pela abordagem, alegando buscar somente uma informação, e que eu não a confundisse, por favor, com uma pedinte ou uma prostituta. Me dispus a ajudar no que fosse possível, e ela me perguntou se eu era de Curitiba. Respondi que sim, e isso a alegrou. Depois, novamente séria, quis saber onde ficava o rio mais próximo.

Fui embora pensando nas intenções da moça. O que ela podia querer com o Ivo?

O rio mais próximo, repeti, para ganhar tempo, avaliando o quanto de insanidade poderia haver no breu daquela conversa. Por fim, respondi que havia o Ivo. Ela testou o nome, Ivo, Ivo, e, para certificar-se, perguntou se era só o Ivo mesmo, se não existiam outros rios por perto. Só tem o Ivo, reforcei, mas no fundo eu não tinha certeza, são tantos os rios que enterramos por aí.

Satisfeita com minha resposta, a moça partiu para uma questão prática: como faço para chegar lá? Expliquei: desça a Taunay, vire à direita na Vicente Machado e à esquerda na Visconde do Rio Branco. Ela me ouviu um tanto distraída, mas de repente despertou e pediu que, por gentileza, eu descrevesse o Ivo.

Meio sem graça, falei dos chorões à sua margem, podados para poupar os biarticulados da Fernando Moreira. Contei do pessoal que fuma pedra nas barrancas do rio, e se mete em seus túneis, e explora o seu leito raso, pavimentado de cacos de tijolo e cerâmica quebrada, papéis de propaganda e preservativos. Reclamei da imundície do Ivo, e do perigo de se ir até ele àquela hora, e da debilidade de sua corrente, um cursinho d’água triste, quase parando.

A moça refletiu por alguns segundos, falou “obrigada” e se encostou no muro, preguiçosa. Não resisti e perguntei o porquê daquele seu interesse por rios. Distante, ela achou melhor me dispensar: “Não tem um porquê, obrigada, tchau”.

De nada. Fui embora, mas pensando nas intenções da moça. O que ela podia querer com o Ivo? Decerto procurava um rio onde lançar alguma oferenda. Ou onde nadar, ou até mesmo matar-se, saltando de uma ponte da imaginação. Se ela me perguntasse onde ficava o banco mais próximo, ou um hotel, um restaurante, um shopping, um bar que lhe vendesse cigarros, quem a julgaria excêntrica? Por que, então, uma pergunta banal sobre o rio mais próximo me causou estranheza?

Talvez seja tudo bem mais simples. Talvez ela só quisesse ouvir, de um desconhecido, a descrição de um rio desconhecido. Foi isso, essa imagem fluida e noturna, que eu dei a ela. Não me custou nada, e pode ser que a moça esteja lá até hoje, à beira desse nosso rio mental, admirando ou lamentando sua passagem penosa, exatamente como estamos fazendo agora. Pena eu não ter criado, para ela, um Iguaçu particular. O que custaria ao cronista ser mais caudaloso?

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