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Muitos povos, a contar da época em que o corrupto Judas traiu Jesus por trinta moedas, conseguiram instituir Estados vigilantes e combativos contra a corrupção.

É o Estado o principal responsável pela corrupção. Se o Estado combate a corrupção, punindo exemplarmente os corruptos, a percepção social acerca da corrupção tende a ser negativa. Valores positivos disseminam-se pela sociedade. O corrupto se transforma em um pária, excluído da sociedade. Preso e encarcerado, com muita dificuldade reconstruirá sua vida, ficando para sempre marcado com a mancha infamante da corrupção. Mas se o Estado omite-se no combate à corrupção, sua prática corriqueira anestesia a sociedade, deixando-a tolerante, senão conformada, com a apropriação de valores públicos ilicitamente como o preço a se pagar pelo funcionamento do aparato estatal.

A impunidade é o maior fator de estímulo ao crime em geral, e à corrupção em especial. A frouxidão marcante e a complacência explícita do Estado Brasileiro com a corrupção permitiram que essa forma ilícita de apropriação privada de recursos públicos pudesse se arraigar tão fortemente à identidade nacional a ponto de o Brasil ser reconhecido, mundialmente, como um país notoriamente corrupto.

A profusão e a recorrência de escândalos e operações policiais que ganharam o noticiário nacional são indicativos da intensa atividade espúria no trato da coisa pública. Basta lembrar dos muitos escândalos envolvendo instituições bancárias (Banco Nacional, Banco Econômico, Banco do Amapá - BANAP, Bamerindus, Banespa, Bancoop, Banestado, Banco Marka, Banco Fonte Cindam, Banorte e Banco Mercantil) e das dezenas de operações policiais (Carranca, Carta Branca, Castelo de Areia, Dominó, Hígia, Jaleco Branco, Monte Carlo, Navalha, Satiagraha, Saúva, Uragano, Vampiro, entre tantas outras), além das dezenas de casos de corrupção igualmente famosos (Anões do Orçamento, Licitações em obras metroviárias, INAMPS, TRT/SP, SUDAM, SUDENE, Correios, Sanguessugas, Safra Legal, Detrans, Máfia dos Fiscais, etc.).

Em 2005, em plena era da internet, com leis tipificando condutas corruptas e determinando a licitação em contratos públicos, o inglês Jonathan Wheatley, do Financial Times, publicou um artigo chamado “Corrupção endêmica assola o Brasil”. Nesse artigo, noticiava que a Controladoria Geral da União (CGU), em uma amostragem aleatória, realizou auditorias em 741 dos 5.500 municípios brasileiros, tendo encontrado irregularidades graves em 90%, e irregularidades em geral em 100% dos municípios. Estimava-se que 20% dos recursos públicos brasileiros eram apropriados indevidamente no circuito da corrupção.

Teme-se que a corrupção tenha se entranhado na vida privada do povo brasileiro. Percebe-se que os corruptos – e seus similares privados – são tolerados pela sociedade. Algumas atividades ilícitas são tratadas sem censura social. Seus autores não são renegados. Isso acontece, por exemplo, com aqueles que negociam seus imóveis e declaram valores menores para o fito de pagarem menos impostos; que enganam os consumidores na quantidade e qualidade dos produtos; recebem benefícios governamentais indevidos; compram e vendem produtos piratas ou contrabandeados; não pagam impostos nem registram seus empregados; fazem declarações falsas para auxiliar parentes e afins; contratam ou beneficiam parentes de forma ilegal.

Muitos cidadãos, quando chamados a servir o Estado, geralmente em cargos de indicação política, passam a se dedicar profissionalmente à pilhagem explícita do dinheiro público em grande escala. Mantendo milhares de dólares em contas de paraísos fiscais, se transformam em gênios financeiros capazes de se dedicar à vida pública e multiplicar o patrimônio privado centenas de vezes. Cobram pedágio na liberação de verbas públicas e propina para assinarem contratos superfaturados. Constroem estradas fantasmas e hospitais inexistentes. Compram remédios e merendas que nunca serão entregues. Contratam consultorias falaciosas e enterram dinheiro público em publicidade que nunca será realizada. Autorizam empréstimos e financiamentos que jamais serão liquidados.

Para refrear essa situação, impõe-se que a outra parte da sociedade, que ainda acredita na honestidade como virtude, disponha-se a agir todos os dias como se a razão de suas ações pudesse se tornar uma lei universal (Kant). Também mal não faria se se dispusesse a denunciar os fatos e indícios criminosos às autoridades competentes e começasse a não votar em pessoas com maus antecedentes no trato da coisa pública. Talvez algum dia existam leis severas e punições exemplares para os agentes públicos que se enveredam pela trilha da criminalidade, inclusive com o afastamento imediato do cargo, confisco liminar de bens e processamento breve, sem muitos recursos, para que o corrupto pudesse logo começar a cumprir uma pena longa e sem benefícios. Quem sabe assim, com o exemplo vindo de cima, começasse o Estado a destruir esse culto nocivo que tanto seduz parte da sociedade. Talvez somente assim os espertalhões da vida pública passassem a pensar duas vezes antes de iniciar a promiscuidade com o patrimônio público.

Será esse um Brasil possível? Será a denominada “Operação Lava-Jato” o tipping point ou o ponto da virada para a construção de um Estado brasileiro menos tolerante com a corrupção?

Tentarei responder essas perguntas no próximo artigo.

*Anderson Furlan, juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo

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