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1.Noções gerais

A criminalização e a descriminalização constituem manifestações pendulares em todos os movimentos de reforma do sistema positivo, tenham eles o caráter pontual, setorial ou global. São tendências que se manifestam, ora no sentido do abrandamento de certas reações estatais contra o delito, ora no sentido de agravá-las atendendo exigências conjunturais ou permanentes da sociedade. Durante os regimes autoritários de governo a rotina legiferante consiste na criação de novos tipos de ilicitude e de aumento das penas, bem como de restrições processuais em prejuízo dos acusados. Nos regimes liberais a tendência é oposta, quando determinadas figuras criminais são eliminadas ou as penas são atenuadas, além de se ampliarem os limites para o exercício da defesa através de maiores franquias processuais como a liberdade provisória e a fiança.

Durante o período dos governos militares dos anos 1960 e 1970 foram muitas as modificações legislativas para punir mais gravemente os delitos contra a segurança nacional e ampliar a competência da jurisdição militar para julgar os civis acusados de crimes políticos. Além disso, também foram editadas leis contendo normas penais relativas às infrações de direito comum.

2.A criminalização

Criminalizar é definir, através da lei penal, determinado comportamento como criminoso. A palavra criminalizar já está dicionarizada como verbo transitivo direto e significa “considerar como crime” (Aurélio, p. 498). A conduta criminalizada poderá ser anteriormente lícita embora reprovável pela ética ou pela moral, como a de “deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo” (Lei n° 8.078, de 11.9.1990, art. 74). Ou poderá ser anteriormente ilícita perante a ordem positiva de um modo geral que a tipificava como infração administrativa, civil, tributária e até mesmo penal, no plano das contravenções. Exemplos: a) a Lei n° 9.437, de 20.2.1997, criminalizou o porte ilegal de arma (art. 10) que era simples contravenção penal (LCP, art. 19) [1]; b) a Lei n° 9.503, de 23.9.1997 (CTB) criminalizou a direção de veículo automotor, em via pública, sem a devida habilitação (art. 309), fato que caracterizava a contravenção prevista no art. 32 da LCP.

3.A descriminalização

Descriminalizar significa retirar o caráter criminoso de determinado fato. Por exigência metódica, inclui-se também no conceito de descriminalização a conversão legal de um ilícito criminal em qualquer outra forma de ilícito, v.g., contravencional, civil, administrativo, tributário, etc. (Figueiredo Dias e outro, Criminologia, p. 399 a 400). O termo é também utilizado por muitos penalistas brasileiros de forma extensiva para abranger as contravenções. Assim se poderia dizer que a Lei n° 9.521, de 27.11.1997, ao revogar o art. 27 da LCP, descriminalizou a conduta de “explorar a credulidade pública mediante sortilégios, predição do futuro, explicação de sonho, ou práticas congêneres”.

Conforme Everardo Luna, a descriminalização, em senso genérico, também compreende em : (a) restringir o âmbito do tipo penal; (b) diminuir a pena cominada; (c) abolir agravantes; (d) transformar o crime em contravenção; (e) transformar a contravenção em ilícito extrapenal; (f) transformar o crime de ação pública em crime de ação pública condicionada ou de iniciativa privada; (g) compreender o dolo eventual na culpa consciente, como ocorre na receptação (Capítulos de Direito Penal, p. 393).

O verbo descriminalizar, composto pelo prefixo des (ação contrária, negação) e pela raiz (criminalizar), já consta de prestigiados dicionários (Houaiss , p. 972; Aurélio , p. 554). Antes dessa incorporação, o neologismo há muito tempo já havia ingressado no vocabulário da doutrina e da jurisprudência nacionais.

Segundo Marc Ancel, a palavra descriminalização surgiu pela primeira vez em uma obra de Sheldon Glueck, em 1949. Mas ele mesmo esclarece não ser recente o fenômeno, posto que já no século XVIII, uma lei inglesa do ano de 1736 proibia as perseguições em matéria de bruxaria (“Décriminalisation et criminalizatión”, em RSCDPC n° 1, de 1976, p. 67).

Diversos países vêm reconhecendo a necessidade de depurar o organismo jurídico-repressivo daquelas entidades típicas que podem ser melhor combatidas por outros setores do Direito ou, ainda, por outras disciplinas extrajurídicas, sem os inconvenientes da pena criminal.

Não se trata de providência de mera oportunidade política ou de objetivos pragmáticos visando atenuar a crise da justiça. É certo que tais aspectos interferem no processo legal-social de descriminalização, mas não constituem os pontos essenciais do movimento que se irradia em muitos sistemas na medida em que as modificações de perspectiva em torno de certos valores, bens e interesses imprimem exigências de maior ou menor tutela.

A descriminalização é um dos temas básicos das ciências penais dos dias correntes e objeto das pautas dos congressos e reuniões internacionais, além de se constituir em um dos back-grounds do movimento de crítica e reforma penal. Mas, como lembram Figueiredo Dias e Costa Andrade, o fenômeno é uma constante na história das instituições penais: e bastará, para o comprovar, ter presente as lições da história do Direito Penal e da Criminologia (Criminologia, p. 398). Interessante aspecto do assunto é a possibilidade de descriminalização de fatos penalmente puníveis em face do comportamento da vítima. A precipitação do crime pela vítima pode frequentemente ter de ser valorada como renúncia à tutela penal, retirando ao sacrifício de seus direitos ou interesses a dignidade penal ou a carência de tutela penal (Figueiredo Dias e Costa Andrade, Criminologia, p. 412).

4. Descriminalização formal

A descriminalização formal é a que se atém às regras jurídicas que presidem a revogação da lei incriminadora ou a declaração de sua inconstitucionalidade. Poderá ela ser: (a) expressa, quando declara a lei (ou norma) revogada; (b) tácita, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei (ou norma) anterior (LINDB., art. 2°).

Um exemplo da descriminalização formal se contém na retroatividade da lei que não mais considera o fato como criminoso, operando-se a causa extintiva de punibilidade prevista no art. 107, III, do CP.

5.Descriminalização informal

Não é admissível, frente ao sistema positivo, a ocorrência de uma “descriminalização” informal, também chamada de fato, que poderia resultar: (a) da não aplicação da lei penal pelo juiz no pressuposto de que foi ela revogada pelos usos e costumes sociais; (b) da renúncia do direito de queixa ou representação e do perdão aceito, nos crimes de ação penal de iniciativa privada, ou pública condicionada; (c) da omissão da autoridade policial ou do MP em promover o inquérito ou a ação penal.

Quanto à primeira hipótese, há precedentes no sentido da “descriminalização” do delito de casa de prostituição (CP, art. 229) e do jogo do bicho (LCP, art. 58 e Dec.-lei n° 6.259, de 10.2.1944, art. 58): “A atividade do próprio Poder Público na exploração de jogos de azar retirou, em verdade, do ‘jogo do bicho’ sua primitiva feição contravencional, tornando-a prática rotineira de ostensiva aceitação popular” (TACRIM-SP, em RT 606/338). (No mesmo sentido: RT 621/334 e JUTACRIM; 81/504; 82/46385/325 e 85/484). Mas tal orientação tem sido modificada pelo Superior Tribunal de Justiça, diante do entendimento de que “o sistema jurídico brasileiro não admite possa uma lei perecer pelo desuso, porquanto, assentado no princípio da supremacia da lei escrita (fonte principal do direito), sua obrigatoriedade só termina com sua revogação por outra lei. Noutros termos, significa que não pode ter existência jurídica o costume contra legem” (Rel. Min. Adhemar Maciel, RT 715/539). No mesmo rumo: STJ, Rel. Min. Assis Toledo, RT 666/376 e Rel. Min. Edson Vidigal, RT 705/387.

As hipóteses (b) e (c) também não caracterizam o fenômeno jurídico- penal da descriminalização. Com efeito, a renúncia e o perdão constituem faculdades do ofendido em não promover a persecução penal contra o ofensor, mantido intacto o crime em todos os elementos de sua constituição. E, por último, a prevaricação do órgão policial ou do MP constitui um delito do omitente e não produz qualquer conseqüência quanto à punibilidade do fato a ser apurado.

6.Descriminalização e o princípio da intervenção mínima

Conforme autorizada doutrina, dentro da ampla gama de propostas de descriminalização, o movimento assume o seu topo no plano político-criminal e se reflete no âmbito dogmático no princípio de intervenção mínima (Cervini, Los procesos de decriminalización, p. 163).

O generoso princípio da intervenção mínima constitui um dos princípios fundamentais do Direito Penal, caracterizando um dos ideais dos juristas de feição moderna e adeptos de um direito penal mínimo.

7.A neocriminalização

A neocriminalização consiste na atividade legislativa de agravar as hipóteses já previstas de crimes, ampliando os seus contornos típicos, aumentando as sanções ou reduzindo as garantias processuais do indiciado, acusado ou condenado. Como exemplos podem ser referidas: a) a Lei nº 8.072, de 25.7.1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, declarando-os – juntamente com o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo – insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança e determinando que a pena seja inicialmente cumprida em regime fechado; b) a Lei nº 9.459, de 13.5.1997, que modificou e aumentou a pena para a injúria se a mesma consistir na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem (CP, art. 141, § 3º) ; c) a Lei nº 9.426, de 24.12.1996, que aumentou as penas para os crimes de roubo (CP, art. 157, § 2º, IV, V e § 3º) e de receptação (CP, art. 180 e § 1º); d) a Lei nº 9.677, de 2.7.1998, que deu novos contornos típicos para alguns crimes contra a saúde pública, elevando as penas (CP, arts. 272, 273, 274 e s.).

8.Bibliografia (Por ordem de indicação)

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de ; COSTA ANDRADE, Manuel da. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Ed.,1984.

LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal: parte geral. São Paulo:Saraiva, 1985.

ANCEL, Marc. La défense sociale nouvelle. Paris: Cujas, 1971.

CERVINI, Raul. Los procesos de decriminalización. Montevideo: Editorial Universidad, 1993.

LINDBLei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

[1] A Lei nº 10.826, de 22.12.2003, revogou a Lei nº 9.437/1997 e aumentou a pena para o crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido para até 3 (três) anos (art. 12).

*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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