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O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, em foto de novembro de 2016.
O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, em foto de novembro de 2016.| Foto: Ernesto Arias/EFE

Em janeiro de 2017, em seus últimos dias à frente do governo americano, antes de passar a faixa para Donald Trump, Barack Obama recebeu na Casa Branca a senhora Sara-Jayne Terp, uma ex-agente do serviço britânico de inteligência (se é que existem ex-agentes de inteligência). No encontro, Obama fez aquele que seria o seu último ato na presidência, e cujos efeitos foram muito além dos limites de sua administração e das próprias fronteiras dos EUA. Olhando para Terp, instruiu-lhe a criar um vasto projeto de contrainformação com um único objetivo: impedir uma repetição de 2016.

Esse e outros eventos de bastidores foram relatados por uma testemunha interna, que acaba de vazar um caminhão de documentos dando novos detalhes sobre o surgimento daquilo que, há alguns meses, o jornalista Michael Shellemberger – um dos poucos profissionais de imprensa, junto com Matt Taibbi e Bari Weiss, a quem Elon Musk primeiro confiou o material dos Twitter Files – passou a chamar de Complexo Industrial da Censura. Os novos documentos, também divulgados por Shellemberger, e logo apelidados de “os Arquivos Liac” (“the CTIL Files”), expõem as atividades de um grupo de “antidesinformação” intitulado Liga de Inteligência de Ameaças Cibernéticas (Liac), que teve Sara-Jayne Terp como uma das principais lideranças. Esse grupo, que começou supostamente como um projeto voluntário e informal envolvendo cientistas de dados, experts em defesa cibernética e veteranos de serviços de inteligência, logo foi absorvido em projetos oficiais ligados ao deep State americano, incluindo aqueles abrigados sob o guarda-chuva do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês) dos EUA, em especial na sua Agência de Segurança Cibernética e Infraestrutura (Cisa).

Segundo Shellemberger, os documentos foram-lhe fornecidos por uma testemunha com alta credibilidade, que teria sido recrutada para integrar a Liac por meio de reuniões mensais de cibersegurança organizadas pelo DHS. A legitimidade das informações da testemunha foram atestadas independentemente por meio de uma extensa verificação cruzada de informações em fontes publicamente disponíveis.

Houve um esforço altamente coordenado e sofisticado pelos governos dos EUA e do Reino Unido para construir uma rede doméstica de censura e operações de influência semelhantes às que eles usaram em países estrangeiros

De acordo com os Arquivos Liac, mensagens internas do grupo no Slack mostram Terp, seus colegas e autoridades do DHS e do Facebook trabalhando conjuntamente no processo de censura. O quadro da Liac e o modelo público-privado são as sementes do que tanto os EUA quanto o Reino Unido implementariam em 2020 e 2021, incluindo a censura dissimulada dentro de instituições de cibersegurança e agendas de combate à desinformação, um foco intenso em interromper narrativas indesejadas (e não apenas as assim chamadas “fake news”), e a pressão exercida sobre plataformas de mídia social para remover informações ou tomar medidas para coibir a viralização de conteúdo proibido.

Em 2020, a Liac começou a rastrear e relatar conteúdo indesejado nas redes sociais, como narrativas anti-lockdown e slogans do tipo “todos os empregos são essenciais”, “não ficaremos em casa” ou “abra a América agora”. A Liac criou um canal de aplicação da lei para relatar conteúdo como parte desses esforços. A organização também fez pesquisas sobre indivíduos que postavam hashtags contra o lockdown, e manteve uma planilha com detalhes de suas biografias no Twitter.

Mas abordagem da Liac foi muito além da censura. Os documentos mostram que o grupo se envolveu em operações ofensivas para influenciar a opinião pública, discutindo maneiras de promover “contramensagens”, cooptar hashtags, diluir mensagens indesejadas, criar contas fictícias e infiltrar grupos privados acessíveis apenas por convite. Em uma lista sugerida de perguntas de pesquisa, a Liac propôs perguntar a membros ou potenciais membros: “Você já trabalhou com operações de influência (por exemplo, desinformação, discurso de ódio, outros danos digitais etc.) anteriormente?” A pesquisa, então, perguntou se essas operações de influência incluíam “medidas ativas” e “psyops”.

Embora vários veículos da grande imprensa tivessem, à época de sua criação, tentado desvincular a Liac de qualquer agência governamental, os documentos sugerem que funcionários do governo eram membros ativos do grupo. Um indivíduo que trabalhava para o DHS, Justin Frappier, foi particularmente ativo, participando de reuniões regulares e liderando treinamentos. O total dos documentos apresenta uma imagem clara de um esforço altamente coordenado e sofisticado pelos governos dos EUA e do Reino Unido para construir uma rede doméstica de censura e operações de influência semelhantes às que eles usaram em países estrangeiros.

Num dos materiais revelados pelos Arquivos Liac, Terp aparece mencionando abertamente o seu trabalho “nos bastidores” em questões de mídia social relacionadas à Primavera Árabe. Em outro momento, a testemunha diz que a ex-espiã britânica chegou a expressar alguma surpresa por estar sendo instada a empregar táticas desenvolvidas para estrangeiros contra cidadãos americanos. De acordo com a testemunha, aproximadamente 20 integrantes ativos da Liac trabalhavam no FBI ou na Cisa. “Por um tempo, eles tinham seus selos da agência – FBI, Cisa, qualquer que fosse – ao lado do seu nome, no serviço de mensagens Slack”, disse a testemunha.

Terp “teve um distintivo da Cisa que desapareceu em algum momento”, diz ainda a testemunha. O objetivo final da Liac “era fazer parte do governo federal. Em nossas reuniões semanais, eles deixaram claro que estavam construindo essas organizações dentro do governo federal e, se você construísse a primeira interação, poderíamos garantir um emprego para você”. O plano de Terp, que ela compartilhou em apresentações para grupos de segurança da informação e cibersegurança em 2019, era criar “comunidades de Misinfosec” que incluiriam o governo. “Misinfosec” – termo que funde as palavras misinformation (“desinformação”) e infosec (termo comumente usado para se referir à cibersegurança) – é um conceito criado por Terp.

Toda a criação do delito de “fake news” foi uma vasta orquestração política designada para combater os “terremotos políticos” de 2016: o Brexit e a vitória de Trump

Os Arquivos Liac e documentos públicos sugerem que Terp foi bem-sucedida nessa empreitada. Em abril de 2020, Chris Krebs, então-diretor da Cisa (e a quem apelidamos de “o czar da censura”) anunciou no Twitter e em vários artigos que a Cisa estava se associando à Liac. “É realmente uma troca de informações”, disse Krebs. Os documentos também mostram que Terp e seus colegas, por meio de um grupo chamado Misinfosec Working Group, criaram uma estratégia de censura, propaganda e contradesinformação chamada Adversarial Misinformation and Influence Tactics and Techniques (Amitt).

As ambições dos pioneiros de 2020 do Complexo Industrial de Censura iam muito além de simplesmente instigar o Twitter a colocar um aviso em tuítes ou incluir indivíduos em listas negras. O framework Amitt exige desacreditar indivíduos como um pré-requisito necessário para exigir censura contra eles. Ele pede o treinamento de influenciadores para disseminar mensagens. E pede tentativas de fazer com que os bancos cortem os serviços financeiros para indivíduos que organizam manifestações ou eventos.

Os Arquivos Liac provam aquilo que, sem essas informações mais detalhadas, eu já havia sugerido desde, ao menos, 2018. E que voltei a mencionar em várias das minhas colunas. Toda a criação do delito de “fake news” foi uma vasta orquestração política – envolvendo agentes públicos e privados, políticos, intelectuais e cientistas da informação, instituições acadêmicas e agências governamentais – designada para combater os “terremotos políticos” (esse o termo utilizado por alguns integrantes do Complexo Industrial da Censura, segundo os arquivos) de 2016: o Brexit e a vitória de Trump. Como escrevi em abril do ano passado, por ocasião da aquisição do Twitter por Elon Musk:

“Diante de tão inaceitáveis resultados, a reação das elites derrotadas e perplexas foi imediata. Primeiro, ressentiram-se da democracia, um modelo decisório demasiado inconstante e imprevisível. Depois, maldisseram a internet livre, o próprio meio que permitira essa democratização da opinião pública, abrindo os portais da civilização digital para uma horda de bárbaros oriundos de ‘guetos pré-iluministas’, uma gente que, com seus hábitos arcaicos e seu espírito indomável, não demonstrou qualquer cerimônia em adentrar o ambiente e perturbar a paz perpétua em Iluminópolis, a cidade dos iluminados, ora tomada pelos visigodos virtuais. Teve início, então, a busca por pretextos pseudo-humanitários (combate às ‘fake news’, à ‘desinformação’, ao ‘discurso de ódio’ etc.) que pudessem conferir uma aparência de dignidade e interesse público àquilo que não passava de uma defesa mesquinha e reacionária do status quo”.

Toda a internacional da censura a que temos assistido mundo afora – e na qual o Brasil ocupa um vexaminoso lugar de destaque – é ainda efeito da revolta das elites globais contra a livre circulação, revolta que começou com o espanto no ano de 2016, quando os efeitos políticos da democratização do mercado de informação e opinião se fizeram sentir de maneira contundente. 2016 é, portanto, o verdadeiro ano que não terminou.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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