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A esquerda já não representa o povo, mas uma elite empenhada em tirar a voz e o voto da maioria.
A esquerda já não representa o povo, mas uma elite empenhada em tirar a voz e o voto da maioria.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Em nossa última coluna eu voltei algumas casas para comentar a reveladora reação da esquerda ao resultado das eleições dos conselheiros tutelares – na minha opinião, manifestando um quadro de “ansiedade generalizada”. Poucos dias depois, o cientista político Rudá Ricci, presidente do Instituto Cultiva, concedeu uma interessante entrevista à Folha de S.Paulo, para a série “O Futuro da Esquerda”. Sua fala, de novo, ilustra de modo cabal a perplexidade progressista diante do momento:

“‘A esquerda tinha a hegemonia cultural do país, mesmo durante a ditadura. Valores religiosos, teatro, música, artes plásticas, cinema, mundo acadêmico, enfim, a produção cultural mais valorizada apresentava fortes traços de esquerda... A ampla coalizão lulista aproxima o PT de algo como um ‘partido da ordem’, fiador do equilíbrio de forças. O PT, em certa medida, se tornou o principal garantidor do pacto estabelecido com a Nova República ... O que resta? O esforço pessoal e a revolta. Quem canaliza a revolta nos últimos tempos é a extrema direita’, afirma o cientista político, para quem ‘a esquerda precisa se reinventar’.”

O tema da matéria, de Uirá Machado, diz tudo: “Esquerda perde monopólio das ruas, vê direita sair do armário e vive paradoxo da ordem”. Qual paradoxo? “Disputa com bolsonarismo empurrou campo progressista para papel de defesa do sistema.” Que horror! É como se à esquerda pertencesse o privilégio de desordenar o mundo, mas, desde que uma besta pior que o diabo emergiu das águas, o próprio Satanás se viu obrigado a salvar o dia.

A razão por que a esquerda luta para defender o sistema contra a direita subversiva não é que a pobre-coitada foi enganada pelos deuses, mas porque ela é... a elite

Outro pesquisador citado na matéria, Jonas Medeiros, do Cebrap, concorda que a esquerda foi “empurrada pela extrema-direita” para a defesa da ordem e da democracia, pela alegada vontade conservadora de retroceder os direitos das minorias, e que faria sentido defender o sistema depois de 35 anos de construção da hegemonia da esquerda. Mas para ele essa é uma “estrutura paradoxal” – uma esquerda ordeira e uma direita subversiva – e a esquerda não será capaz de enfrentar os desafios futuros sendo uma “esquerda da ordem”.

O tocante dilema existencial da esquerda no poder – e no jornalismo – merece, se não a nossa empatia, a curiosidade intelectual. Essa contradição entre páthos subversivo e função “conservadora” ou, melhor, reacionária apenas reforça a impressão de falsa consciência. Um movimento político não pode ter em seu âmago um desejo de subversão, exceto se ele for, de fato, um movimento moralmente patológico, como uma frieira que se deseja coçar desesperadamente.

Mas é bom ver o mal confessar sua maldade, porque isso torna as coisas mais claras. O propósito de um movimento político bom e justo só pode ser a justiça e o bem comum, e a vontade de subversão que polui o imaginário espiritual da esquerda é o produto da inversão moral moderna, sobre o qual tratamos um número de vezes nessa coluna: o “Minotauro” progressista, que canaliza a revolta para revolucionar a ordem. Os conservadores, centristas e aqueles esquerdistas honestos sabem que, além de promover os direitos humanos de minorias, a esquerda pós-materialista ou libertária busca destruir normas morais e sociais conservadoras, de modo a produzir um novo “estado de natureza” chamado “autenticidade”. Essa vontade de subversão, por sinal, é o que polui o dialeto liberal dos direitos humanos, atraindo a indignação conservadora. Tudo um grande jogo de sombras.

Não que eu negue a preocupação declarada dos cientistas políticos: uma esquerda sem vontade de subverter não será capaz de defender a democracia plena, combater desigualdades sociais e de enfrentar a mudança climática, se está apenas ocupada em manter a ordem. Mas, como disse outro dia, não acredito em uma palavra desse discurso.

A razão por que a esquerda luta para defender o sistema contra a direita subversiva não é que a pobre-coitada foi enganada pelos deuses, mas porque ela é... a elite. Ricci ao menos admite isso abertamente: a hegemonia cultural já pertencia à esquerda havia muito tempo. Ora, que grupo detém a hegemonia na universidade, no jornalismo, na produção cultural, no Judiciário e no Executivo? Que grupo é capaz de colocar a seu serviço os maiores grupos empresariais e fundações filantrópicas atuando no país, se não a elite?

Não há nenhum “paradoxo da ordem”. A esquerda não foi “empurrada” pelo maldoso bolsonarismo para o ingrato trabalho de preservar as instituições. O conflito entre a esquerda “ordeira” e a direita “subversiva”, que à superfície se mostra horizontal, é no fundo um conflito vertical: o conflito entre uma elite cosmopolita, com valores esquerdistas e hábitos patrimonialistas, e um proletariado cultural conservador, mas plural em suas visões sobre Estado e economia. Esse proletariado envolve a classe C, a classe média e uma maioria evangélica. Eles têm, sim, o apoio de uma pequena elite conservadora de maioria católica, mas essa última há muito tempo perdeu seu poder de dobrar os rumos nacionais.

A esquerda não dispõe mais de seus antigos oleodutos de “revolta” porque quem está revoltado é o povo, e a esquerda deixou de ser povo há muito tempo

A elite cosmopolita defende a democracia? Sim, contra o risco do populismo de direita, e não tenho por que negar isso. Mas Trump e Bolsonaro não são causas, e sim efeitos. Desde 2013 a elite sabe que perdeu o contato com as massas, e que a sua versão de “democracia” não funciona. O modelo fracassa em muitos níveis, desde o abuso do Judiciário para impor sua subversão moral (e não apenas para promover direitos humanos, como insiste em alegar) à falha em lidar com problemas sociais urgentes como segurança pública e emprego. A decisão da elite de ressuscitar Lula, a “kriptonita” de Bolsonaro, destruindo o sistema de defesa contra a corrupção diante dos olhos de todos, debilitou ainda mais a confiança na sua “democracia”.

O que me deixa realmente perplexo é a incapacidade de nossos jornalistas e intelectuais de reconhecer esse óbvio que vem se repetindo em diversas democracias atuais: uma elite cosmopolita e “tecnoburocrática” (como diz Michael Lind) faz tudo o que pode para neutralizar a voz e o voto das massas, e luta para manter a sua “ordem”. É por isso, meus amigos, que a esquerda não dispõe mais de seus antigos oleodutos de “revolta”. Quem está revoltado é o povo, e a esquerda deixou de ser povo há muito tempo.

Uma saída possível seria a elite nacional ceder e dividir o poder com o proletariado cultural; desistir de usar o STF para forçar suas agendas e “empurrar o país na direção certa”; abandonar a “síntese identitarista”; e admitir um Brasil plural. Seria um passo pequeno, mas salutar. Outra alternativa seria a ascensão de uma nova elite, capaz de alcançar um acordo nacional.

Para a esquerda atual, a esquerda que é o establishment, parece haver apenas um futuro admissível: manter sua capacidade de iludir as massas, controlando a produção e disseminação do conhecimento, dissimular seus atos de manipulação do sistema, e culpar os conservadores por sua guerra cultural vertical.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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