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Brasília, (DF) – 29/09/2023 – Entrevista coletiva do presidente do STF, ministro Luiz Roberto Barroso. Foto Valter Campanato/Agência Brasil.
Brasília, (DF) – 29/09/2023 – Entrevista coletiva do presidente do STF, ministro Luiz Roberto Barroso. Foto Valter Campanato/Agência Brasil.| Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

De saída, aviso: não pretendo fazer a exegese de todo o discurso do Ministro Roberto Barroso. Tomarei uma única frase, que captura o contexto inteiro de seu trabalho político jurídico, para interpretá-la de forma contra-hegemônica.

Não é segredo para ninguém o fato de que boa parte da resistência dos brasileiros contra o aborto vem da religião. Segundo a pesquisa mais recente do instituto Datafolha, os mais jovens (61%) e mais escolarizados (59%) são a favor do aborto; mas quando a variável é a religião e classe social, a coisa muda: apenas 30% dos evangélicos e 39% dos pobres apoia o aborto. Já a investigação do Paraná Pesquisas mostrou que no cômputo geral, 79% da população brasileira é contrária à descriminalização do aborto. O resultado ilustra o peso da religião no imaginário moral nacional: o país também é um dos mais religiosos do mundo, no topo do ranking da pesquisa Global Religion 2023 do instituto Ipsos, com 89% de crença em um poder superior ou divino.

Esses números são consistentes e confirmam a tese do cientista político Ronald Inglehart, que criou com Chris Welzel o World Values Survey, que há quarenta anos levanta dados sobre a transformação dos valores morais em escala global, e que prestou um imenso serviço à compreensão científica da sociedade contemporânea.

Inglehart notou um repentino e drástico declínio na importância da crença religiosa em todos os países ocidentais e em várias nações do leste europeu ao oriente a partir de 1981, ao mesmo tempo em que as regras de controle da fertilidade eram relaxadas ou transformadas

Ron Inglehart sustenta que a religião evoluiu juntamente com a espécie humana como uma espécie de dispositivo de reforço para a pró-socialidade e para a regulação otimizada dos recursos reprodutivos do grupo social. Grupos humanos mais pró-sociais e mais inteligentes na gestão do sexo e da fertilidade apresentavam mais adaptabilidade e sobrevivência, auxiliados pelos sistemas de crença consistentes e pelas regras morais religiosas.

Tudo mudou, no entanto, com o advento das sociedades pós-materialistas. A melhoria das condições de vida, pela industrialização, democratização e formação de uma ampla economia de bens simbólicos, resultou em uma situação de alta segurança material, tornando desnecessárias as regras estritas de fertilidade e de conformidade social legitimadas pela religião. Nas democracias liberais avançadas, a criatividade e o protagonismo individual são grandemente encorajadas, conduzindo a uma ética que privilegia a expressão e a escolha individual – o que Robert Bellah chamou, de modo mais crítico, de “individualismo expressivo”.

Pois bem: Inglehart notou um repentino e drástico declínio na importância da crença religiosa em todos os países ocidentais e em várias nações do leste europeu ao oriente a partir de 1981, ao mesmo tempo em que as regras de controle da fertilidade eram relaxadas ou transformadas: liberação sexual, controle da natalidade, aborto, aceitação da homossexualidade, novas identidades, novos modelos de família. As novas regras, de modo incrivelmente consistente, se tornam hegemônicas ao mesmo tempo em que a sociedade se torna mais secularizada:

Hoje, a secularização é largamente dirigida pela mudança de normas pró-fertilidade para normas de escolha individual. Os dois estão intimamente relacionados. Países cujos públicos enfatizam normas pró-fertilidade tendem a ser fortemente religiosos, ao passo que países cujos públicos enfatizam normas de escolha individual são muito menos religiosos. Como se poderia esperar, os públicos de países de alta renda estão mais altos no ranking das normas de escolha individual, e – embora eles tenham sido muito mais religiosos do que os países comunistas no passado – hoje estão entre os povos menos religiosos. Na outra ponta do espectro, os públicos de países de maioria muçulmana e os países de baixa renda da África e América Latina são os povos mais religiosos do mundo e os que aderem mais fortemente às normas pró-fertilidade.”

A tese de Ron Inglehart é fascinante e me parece fundamentalmente correta – os resultados da sétima rodada da World Values Survey, divulgados no começo de 2023, apenas confirmam sua teoria. O cientista político não entra numa discussão de mérito sobre a veracidade das crenças religiosas, mas não esconde uma aprovação a essa “transvaloração” nas democracias liberais avançadas. Ele reconhece abertamente que tais mudanças seriam impossíveis sem a base cristã e protestante dos países mais desenvolvidos do mundo, mas parece vê-los como uma espécie de primeiro estágio de um foguete lançado para a estratosfera. Nesse sentido, não lamenta nem um pouco o abandono da fé cristã e a rápida secularização desses países.

Se essa interpretação da história recente da ordem moderna estiver correta, a luta pelo aborto, em nome dos “direitos das mulheres” é, mais do que isso, parte da luta da elite cosmopolita para subjugar um proletariado cultural cristão e conservador

A coisa é mais complexa, no entanto; Inglehart não entra no mérito dos processos políticos por trás da inversão moral, jurídica e política nas democracias liberais, mas autores como David Goodhart e Michael Lind vem apontando corretamente, na minha opinião, a construção de uma dominação hegemônica: a reformatação dessas sociedades por uma elite administrativa que controla os meios de produção cultural e que se mantém no poder através do sistema de credenciamento universitário. Nas palavras de Lind, em The New Class War: “A Guerra Fria foi seguida pela guerra de classes. Uma guerra de classes transatlântica explodiu simultaneamente em muitos países ocidentais entre elites posicionadas nos setores corporativos, financeiros, governamentais, midiáticos e educacionais, e populistas de classe trabalhadora desproporcionalmente nativos. O velho espectro de esquerda e direita deu lugar a uma nova dicotomia na política, entre os de dentro (insiders) e os de fora (outsiders).”

Ainda segundo Michael Lind, as agendas progressistas da elite administrativa, em campos como gênero, sexualidade e família, raça e multiculturalismo, não consideram os aglomerados comunitários de facto, que operam como resistência a essa burguesia, mas com indivíduos isolados. Em nome da defesa dos vulneráveis, o que se faz é cooptar simbolicamente diversos recortes do proletariado cultural e da classe trabalhadora, fragmentando e silenciando sua resistência coletiva. Nesse sentido o processo inteiro do Identitarismo tem efeitos despolitizadores e alienantes, empurrando as massas para o neopopulismo demagógico.

Se essa interpretação da história recente da ordem moderna estiver correta, a luta pelo aborto, em nome dos “direitos das mulheres” é, mais do que isso, parte da luta da elite cosmopolita para subjugar um proletariado cultural cristão e conservador, e acelerar a transição geracional do Brasil para o individualismo expressivo – afinal, as novas regras serão a base da vida e da educação dos filhos dos crentes evangélicos e católicos.

Assim devemos ler, em última análise, o discurso de posse do novo Presidente do STF, o Excelentíssimo Ministro Roberto Barroso, do que vale citarmos um trecho exemplar:

Por fim, cabe-nos a proteção dos direitos fundamentais, que são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna. Direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna. Nessa matéria, temos procurado empurrar a história na direção certa.”

E o discurso prossegue, com um previsível sumário de pautas de direitos de minorias, ao sabor da imaginação identitária. O discurso pode ser lido na íntegra aqui. Ora, o que significa “empurrar a história na direção certa”? À parte do fato, muito bem observado por Lucas Berlanza em suas mídias sociais, de que nada disso se encontra nas atribuições de um Ministro do STF segundo a Constituição Federal, é inescapável reconhecer no ativismo judicial da Suprema Corte a construção de uma hegemonia cultural: a hegemonia da classe administrativa – ou, como eu prefiro colocar, da elite cosmopolita nacional. Essa elite realmente se vê como a ponta de lança do avanço civilizatório, e não admitirá que a transvaloração dos valores seja interrompida por um excesso de democracia. A neutralização cultural e política dos axiomas primitivos de família e religião é necessária para a vitória completa do capitalismo emocional.

Não posso negar certa empatia e até afinidade com as sensibilidades morais e políticas do novo Presidente do STF. Não poderia fazê-lo, tendo em vista que muitos valores da democracia liberal foram gestados no ventre do cristianismo – algo que mesmo Ron Inglehart admite abertamente. Acredito realmente ser possível um pluralismo democrático no qual moralidades diversas possam conviver com a grande tradição cristã, e no qual as desigualdades injustas sejam devidamente confrontadas. Mas a história recente do STF, as posições explícitas do Ministro Barroso, e essa glamorosa festa de posse, com seus ilustres convidados, me dizem outra coisa sobre o que está acontecendo. A coisa toda me diz que nós, o Brasil e a história estamos sendo empurrados.

E nada mostrará isso, com mais clareza, do que o posicionamento que o STF tomará agora, no julgamento da ADPF 442. Veremos, em poucas semanas, quem está sendo empurrado, e para onde.

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