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“No leito de morte”, de Edvard Munch
“No leito de morte”, de Edvard Munch: tema era presença constante na obra do pintor norueguês.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Christopher Kerr era um jovem médico que havia concluído sua residência quando respondeu ao anúncio de um hospice em Buffalo, cidade norte-americana na fronteira com seu Canadá natal. Hospices são instituições de saúde que se dedicam a oferecer cuidados paliativos a pacientes desenganados, aqueles a quem os médicos dirigem “as piores palavras que alguém pode dizer a quem está sofrendo: ‘não há mais nada que possamos fazer’”. Pois havia, e muito: garantir que esses pacientes fizessem sua jornada final com dignidade. E Kerr aprendeu logo que essa dignidade não incluía apenas o empenho máximo nos cuidados para eliminar a dor e proporcionar qualidade de vida aos pacientes, mas também permitir que as necessidades mais essenciais de quem está prestes a encontrar a morte sejam supridas.

Kerr descobriu que a enorme maioria de seus pacientes tinha sonhos ou visões – e usamos essas palavras na falta de um termo mais adequado para descrever tais experiências – que traziam conforto aos pacientes terminais. Diante da incredulidade de seus pares, reflexo da mentalidade cientificista que só aceita como verdadeiro o que pode ser tocado ou medido, Kerr se lançou em um esforço de pesquisa rigorosa, de acordo com todos os protocolos e formalidades característicos do mundo acadêmico. Ao contrário de estudos anteriores, baseados em relatos de terceiros (cuidadores ou familiares), ele ouviu diretamente os pacientes, inclusive filmando seus depoimentos. E, ao contrário de outros autores que usavam tais experiências como meio para validar suas convicções prévias – freudianos, junguianos, parapsicólogos, religiosos –, Kerr só queria que as experiências fossem reconhecidas e respeitadas pelo que elas são. O resultado está em Death is but a dream – Finding hope and meaning at life’s end, lançado em 2020.

O livro tem um sabor igual ao das obras de Oliver Sacks (e digo isso como um elogio, pois sou fã do neurologista falecido em 2015), misturando relatos reais com as explicações e reflexões do autor. Kerr explica, por exemplo, como as experiências de fim da vida não têm nada a ver com sonhos comuns, e também são diferentes de alucinações (causadas ou não por medicamentos) ou situações produzidas por estados mentais como a demência. “Sonhos e visões no fim da vida ajudam a suprir as necessidades únicas de cada paciente, seja a de se sentirem perdoados, amados ou em paz”, define. Pessoas queridas – falecidas ou não – são encontradas; traumas passados são superados e até reescritos, da perda de um membro a uma infância na pobreza e à carnificina do Dia D; casais que viveram muitas décadas juntos até que um dos cônjuges morresse se reencontram na melhor época de suas vidas, e crianças veem seus animais de estimação. Kerr descreve a surpresa de vários desses pacientes quando percebem que diante deles há alguém que compreende a natureza peculiar de tais experiências e não as descarta como loucura – um aviso contra o impulso médico inicial de responder a tais relatos com mais medicação, “travando” a mente dos pacientes e impedindo que eles obtenham, por meio desses sonhos e visões, aquilo que em inglês chamamos de closure: uma conclusão pacífica para suas vidas.

Death is but a dream é bonito e comovente. Impossível não lê-lo sem acabar se identificando com ao menos alguma das histórias, de alguma forma

A pesquisa minuciosa, para além do puramente anedótico, deu a Kerr números e padrões: mais de 80% dos pacientes pesquisados reportaram ao menos uma experiência de fim da vida, e sua ocorrência era universal, independendo de outros fatores, inclusive de crença religiosa; os sonhos e visões não surgiam apenas nos últimos instantes da vida do paciente, mas dias e até semanas antes da morte; à medida que o momento final se aproximava, aumentava a frequência com que pessoas falecidas apareciam nas experiências de fim da vida. Mas nem sempre o conteúdo desses sonhos e visões era reconfortante: 18% dos pesquisados relataram experiências perturbadoras, e entre os casos mais impressionantes do livro estão os do ex-policial Eddie e do ex-presidiário e ex-viciado em drogas Dwayne – no entanto, mesmo essas experiências, no fim das contas, eram uma oportunidade final de redenção. “Percebemos que sonhos angustiantes no fim da vida não necessariamente levam a um processo de morte perturbador ou pesado. Sob a superfície, tais sonhos frequentemente trazem consigo a maior das oportunidades para a descoberta de significado, perdão e paz. Eles podem ser opostos [às outras experiências] em conteúdo, mas não no resultado final”, diz Kerr, que também foi desafiado por experiências que inicialmente pareciam não fazer muito sentido, mas adquiriam uma luz inteiramente nova quando analisadas diante de uma vida toda. “Este é um fenômeno universal. E é sempre sobre o amor”, escreve o médico; “pessoas que receberam e deram amor nunca morrem sozinhas”, afirma ele, acrescentando que famílias enlutadas cujos entes queridos tiveram essas experiências de fim da vida e partiram em paz também são capazes de lidar melhor com a perda.

Death is but a dream é bonito e comovente. Impossível não lê-lo sem acabar se identificando com ao menos alguma das histórias, de alguma forma – no mínimo, o leitor se pegará em um exercício de imaginação, pensando em quem estaria em suas experiências se porventura viesse a passar por elas. Longe de ser algo macabro, trata-se de reconhecer uma série de verdades: a de que somos mortais (por mais que a medicina hoje tenha horror à menção desse fato), a de que precisamos amar e ser amados, de que nossa vida é repleta de acertos e erros, e a de que no fim todos desejaremos a certeza de que tudo ficará bem, conosco e com os que deixaremos.

“Eu sou um médico, e todos os meus pacientes morrem”, diz Kerr ao iniciar o parágrafo final da introdução do livro. Por mais que a morte seja, inevitavelmente, o destino final de todos os pacientes de todos os médicos, a medicina atual ainda vê nessa frase a confissão de um fracasso. Mas, como também afirma o autor, “um dos maiores privilégios de meu trabalho como médico foi testemunhar a fase da vida que faz surgir o melhor nas pessoas”. Se ao menos a maioria dos pacientes de Kerr “entra nessa noite acolhedora com doçura” em vez de “odiar a luz cujo esplendor já não fulgura”, ao contrário da exortação do poeta Dylan Thomas (na bela tradução de Ivan Junqueira), nem de longe se pode falar em fracasso, pelo contrário: há algo de muito precioso em proporcionar a alguém a possibilidade de passar por seus últimos momentos em paz.

Se você ficou curioso para ler Death is but a dream...

... não perca nossa próxima coluna, que trará uma entrevista com o dr. Kerr, feita no fim de maio, durante o 4.º Congresso Internacional de Pesquisa em Saúde e Espiritualidade, realizado em Juiz de Fora (MG).

E, falando em entrevistas, ...

... o livro A razão diante do enigma da existência, que reúne quase 30 entrevistas feitas para o Tubo de Ensaio em quase 15 anos dessa nossa conversa sobre ciência e fé, está disponível no Bookando e na Amazon.

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