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Materialistas são o Zeca Pagodinho da neurociência: “Deixa o cérebro me levar / cérebro, leva eu”.
Materialistas são o Zeca Pagodinho da neurociência: “Deixa o cérebro me levar / cérebro, leva eu”.| Foto: H.B./Pixabay

Quando dizemos que alguém tem “um bom coração” ou que “toma decisões com o fígado”, ninguém entende essas afirmações de forma literal. Mas, quando o assunto é o cérebro, a coisa muda totalmente de figura. Quando dizem que “nós somos nosso cérebro”, querem dizer exatamente isso: que tudo o que fazemos ou sentimos não passa de impulsos elétricos em nossos neurônios e descargas de hormônios. Achamos que temos o controle de nossas vidas, mas no fim das contas somos escravos de toda a química que circula dentro de nossas cabeças.

É para derrubar essa ideia – essa “neuromania”, na expressão de Raymond Tallis – que Juan Francisco Franck, professor de Filosofia da Universidad Austral, em Buenos Aires, escreveu ¿Somos o no somos nuestro cerebro? – Un ensayo filosofico (e com o que acabei de dizer o leitor ganha um spoiler sobre a resposta que ele dará). O autor nos leva por um passeio no qual só mesmo um filósofo poderia nos guiar – um filósofo que conhece neurociência, por certo –, pois “a filosofia consiste principalmente em procurar que nada importante ou verdadeiro se perca de vista em nossa compreensão do mundo e do homem” (p. 82), e a pergunta do título pede justamente que enfrentemos as limitações da ciência em geral e do conhecimento que temos sobre o cérebro em específico, e que saibamos identificar todas as falácias que rondam o discurso reducionista a respeito da relação cérebro/mente/consciência.

As fragilidades desse discurso são muitas, das mais básicas às mais complexas, e Franck vai listando-as. Temos, por exemplo, a “falácia mereológica”, que atribui às partes o que é próprio do todo (afinal, não é “seu cérebro” quem decide algo, é você). Temos uma compreensão falha do que vemos em exames – o fato de certa área do cérebro ser “ativada” quando você reza ou acha graça em algo (e isso, ainda por cima, só pode ser medido em circunstâncias bem específicas) não significa que essa ativação seja a causa da “experiência religiosa” ou “humorística”; além disso, “os gráficos (...) indicam um certo grau de atividade em determinadas áreas do cérebro, mas não se parecem em nada com uma emoção, uma lembrança, um pensamento ou uma decisão. Nem são o mesmo que ocorre no cérebro, mas uma imagem codificada com métodos muito sofisticados. Esses aparelhos não podem captar nenhum estado mental, mas apenas os seus sinais” (p. 54). E aí vamos para águas mais profundas, como o sentido da experiência pessoal: podemos saber como funcionam os mecanismos da dor, mas jamais saberemos como outras pessoas sentem a dor. E, por fim, o que queremos dizer quando falamos “eu”? Aqui, Franck oferece uma contestação às ideias de neurocientistas e filósofos da moda, como António Damásio ou Thomas Metzinger.

O fato de certa área do cérebro ser “ativada” quando você reza ou acha graça em algo não significa que essa ativação seja a causa da “experiência religiosa” ou “humorística”

Enfim, tem mais coisa aí do que dizem os reducionistas. O terceiro dos quatro capítulos do livro se dedica a isso: a desafiar a proposição naturalista, mesmo na sua versão mais “suave” – em vez de “não somos mais que nosso cérebro”, algo como “o cérebro é a causa da mente” –, e mostrar que, se o naturalismo já é uma ideia difícil de defender em geral, ele o é ainda mais quando se trata da questão do cérebro/mente/consciência. E, como afirma Franck usando o exemplo de Thomas Nagel, ninguém precisa ter fé religiosa para compreender as fraquezas do naturalismo e perceber que o universo não é só matéria: “Não é tão difícil ver que quem pretender reduzir toda explicação ao físico-químico se verá em apuros para explicar a mais básica experiência humana”, diz o autor (p. 97). Então, “ponhamo-nos de acordo: o imaterial existe” (p. 104) – não apenas no sentido de que “a ninguém ocorre que um número, um conceito, uma lei lógica, a honra ou uma teoria científica sejam coisas materiais”, mas no sentido de que “há no homem um princípio vital real propriamente imaterial, graças ao qual pode pensar. Que o chamemos mente, inteligência, alma, espírito é o de menos. O importante é que reconheçamos uma realidade imaterial no ser humano, ou melhor, que nossa realidade não é totalmente material nem corpórea” (p. 107).

Como chamamos essa realidade imaterial é o de menos, mas... e se temos realmente uma alma? Essa é a provocação final de Franck, começando com a alma como a entendia Aristóteles – como um “princípio vital”, de ordem superior, que “dá forma (‘informa’) a um princípio de ordem inferior e este permite àquele expressar-se” –, passando por René Descartes (e as caricaturas que às vezes se faz de suas ideias), e finalmente chegando a Josef Pieper e a capacidade de o homem se perguntar sobre tudo, independentemente de interesse imediato ou utilidade prática, ao contrário do que fazem outros animais. “A abertura ao infinito é a razão pela qual se diz que a alma humana é espiritual, ou, ainda, que o homem tem um espírito” (p. 125), ainda que muita gente afogue essa abertura no hedonismo imediatista.

E nessa abertura está a chave para nossa capacidade de nos relacionarmos com os outros e, especialmente, com um Outro. “Não encontraremos Deus no cérebro, assim como não buscamos nossos amigos ali quando pensamos neles (...) A origem da ideia de Deus não está no cérebro. Não faz sentido falar de um ‘neurônio de Deus’, ainda que existisse algum tipo especial de neurônios que fossem ativados apenas em um contexto religioso”, diz Franck, que arremata: “[a ideia de Deus, ou de um ser infinito] é uma janela que se abre em nossa mente até o próprio infinito, e que nos lembra que o homem não é unicamente deste mundo, nem está apenas nele”.

Outro dia, elogiei Ciência da vida após a morte por causa, entre outros elementos, da contestação que o livro oferecia ao fisicalismo (que é como os autores se referem ao naturalismo reducionista aplicado à neurociência). Pois ¿Somos o no somos nuestro cerebro? é igualmente acessível, mas bem mais denso. É para quem está interessado não tanto nos pormenores do estado da arte da pesquisa em neurociência, mas na reflexão filosófica sobre esses temas. “Não é questão de escolher entre a filosofia e a neurociência”, diz Franck (p. 46), mas de reconhecer que “o cérebro não existe sozinho nem à margem de uma biografia”, e de fazer as perguntas certas: “Onde está a prova de que a causa de um objeto abstrato, de uma teoria matemática ou de uma hipótese científica qualquer seja um conjunto de neurônios, substâncias químicas e impulsos elétricos, por mais habilmente dispostos que estejam? Quem detectou o surgimento de uma única ideia a partir do cérebro? Com que aparelho mágico?” (p. 60). Dando à neurociência o que é da neurociência e à filosofia o que é da filosofia, não caímos nem na neuromania, nem no neuroceticismo.

Se o naturalismo já é uma ideia difícil de defender em geral, ele o é ainda mais quando se trata da questão do cérebro/mente/consciência

Falando em Ciência da vida após a morte...

... os autores estarão em Curitiba na próxima semana para lançar o livro e conversar com os leitores. Mas fique atento, que a programação tem um evento novo e uma mudança de horário. Na terça-feira, dia 5, a novidade: um bate-papo com os autores na livraria A Página, do Shopping Estação, às 18h30. No dia seguinte, quarta-feira (6), a conferência tem novo horário: começará às 10h30, no mesmo lugar: o Auditório Professor Alcides Munhoz da Cunha, do Prédio Histórico da UFPR, na Praça Santos Andrade. A moderação será do professor Adriano Holanda (Psicologia/UFPR). Nos dois eventos, não é preciso fazer inscrição prévia e a entrada é franca e aberta a toda a comunidade.

Mais Juan Francisco Franck em livro

Dez anos atrás, o Tubo de Ensaio conversou com Juan Francisco Franck e com Claudia Vanney, também da Universidad Austral, durante um workshop do qual os três participamos na Universidade de Oxford. À época, eles eram diretores de um projeto sobre determinismo e indeterminismo, e foi sobre isso que falamos. Veja um trechinho do que disse Franck:

“A questão do determinismo sempre teve grandes consequências para a vida pessoal. O que agora ocorre é que a visão determinista do mundo – que sempre foi filosófica, ainda que a ciência a tenha encampado um dia – está em crise. Então, as questões sobre o sentido da existência humana, da possibilidade de uma liberdade real, perguntas como ‘quem sou eu?’, ‘para onde vou?’, sobre até que ponto sou livre, a ciência não pode se opor a esse tipo de questionamento.”

A entrevista de Vanney e Franck é uma das quase 30 que compõem A razão diante do enigma da existência, uma coletânea das conversas que tive com filósofos, teólogos, cientistas, historiadores e outros nomes do diálogo entre ciência e fé. Você pode comprá-lo na Amazon ou no Bookando.

PUCPR ainda tem inscrições abertas para palestra on-line com Nobel de Física

Ainda dá tempo de se inscrever gratuitamente para assistir à palestra de John Mather, ganhador do Nobel de Física de 2006, organizada pelo Instituto Ciência e Fé da PUCPR. O evento ocorre no próximo dia 14, às 19 horas, e será transmitido pelo canal de YouTube da universidade, mas há a necessidade de se fazer a inscrição. Mather falará sobre “O Big Bang e o mistério da vida” – o trabalho que lhe rendeu o Nobel analisava a radiação cósmica de fundo, por meio do satélite Cobe, e reforçou o modelo do Big Bang.

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