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Detalhe do manto onde está impressa a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.
Detalhe do manto onde está impressa a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.| Foto: Facebook/Insigne y Nacional Basilica de Santa María de Guadalupe

De todas as imagens que se convencionou chamar de acheiropoieta (do grego, “feito sem as mãos [humanas]” – se você pensou em uma certa paróquia ou festa italiana em São Paulo, sim, tem a ver), a mais famosa certamente é o Sudário de Turim, ou Santo Sudário, que já foi tema de inúmeras publicações no Tubo de Ensaio. Mas aqui na América Latina temos um acheiropoieton também bastante célebre, cujo aniversário vamos celebrar nos próximos dias e que desafia a ciência. Falo, claro, do manto em que está impressa a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, cuja festa litúrgica é celebrada em 12 de dezembro justamente por ser a data do milagre.

Resumindo bem resumidamente, trata-se de uma espécie de túnica – mais exatamente, uma tilma ou ayate – que pertencia a Juan Diego Cuauhtlatoatzin, o nativo que viu a Virgem Maria em dezembro de 1531, onde está hoje a Cidade do México. Quando o bispo Juan de Zumárraga quis provas de que as aparições eram reais, Nossa Senhora pediu que Juan Diego colhesse flores no alto da colina de Tepeyac e as levasse ao bispo. As flores eram rosas de Castela, raríssimas naquela época do ano. Quando Juan Diego abriu sua túnica e deixou caírem as flores diante de Zumárraga, a imagem da Virgem foi imediatamente impressa na tilma, para a admiração de todos os que presenciavam a cena.

O tecido do qual foi feita a tilma de Juan Diego se deteriora em poucos anos, mas o manto de Guadalupe segue intacto depois de quase cinco séculos

Ao contrário do Santo Sudário, que só é exibido esporadicamente e com pouca frequência (e eu jamais perdoarei o arcebispo de Turim por não ter autorizado uma exibição durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2006), o manto de Guadalupe está em exposição permanente (tive a felicidade de vê-lo em 2011) na basílica nova, construída nos anos 70 do século passado e, assim como a de Fátima, bem mais feia que a anterior – ao menos no caso mexicano há o argumento de que a basílica velha está razoavelmente danificada, e realmente é possível sentir a inclinação da igreja quando se caminha dentro dela. Mas, para os nossos propósitos, é mais importante ressaltar uma outra diferença entre o Sudário e a tilma: se o paradeiro do Sudário desde a época de Cristo até ele aparecer na França é desconhecido, havendo hipóteses mais ou menos plausíveis, toda a história do manto guadalupano está bem registrada desde seu começo, o que de antemão já afasta uma série de alegações de falsificação como as que de vez em quando aparecem contra o Sudário.

Já no século 17 o manto de Guadalupe estava intrigando os cientistas da época, por uma razão muito simples. A fibra de ixtle, o material de que eram feitos os ayates como o de Juan Diego, durava pouco – na melhor das hipóteses, algumas décadas –, mas o tecido com a imagem de Nossa Senhora levava um século sem sinal de deterioração. Em 1666, duas equipes, uma de artistas e uma de químicos, examinaram a tilma. Os artistas e professores de arte não encontraram sinais de pinceladas na imagem original, e afirmaram que seria impossível uma pintura tão sutil, bela e duradoura, com as cores bastante vivas mesmo depois de tanto tempo, ser feita sobre uma superfície tão rústica quanto a daquele pano, ainda mais sem uma preparação por baixo, e manter sua qualidade. Estudos posteriores, inclusive feitos por um Nobel de Química e por cientistas da Nasa, também não acharam corantes, nem verniz, nem pinceladas na imagem original.

Os químicos de 1666 (e todos os que vieram depois deles) afirmaram não haver explicação para a durabilidade do ayate, ainda mais porque o ar da região era cheio de salitre, um fator adicional que deveria acelerar a deterioração do tecido. Em outra experiência, feita no fim do século 18, um ayate foi confeccionado com o mesmo material daquele de Juan Diego e deixado nas proximidades. Ele não aguentou nem dez anos, mesmo protegido com duas camadas de vidro, coisa que a tilma guadalupana não teve por um bom tempo. Para completar, o ayate de Juan Diego ainda sobreviveu a um acidente com ácido nítrico no século 18 e a um atentado a bomba em 1921 que danificou tudo em volta – o pano, no entanto, ficou intacto.

Um detalhe: a imagem original não sofreu nenhum tipo de desgaste, mas a piedade popular havia resolvido dar uma embelezada na Virgem, por exemplo colocando folhas de ouro. Essas adições, sim, estão se deteriorando, como demonstraram os cientistas da Nasa que usaram a técnica de fotografia em infravermelho em 1979.

Estátua no Santuário de Guadalupe mostra o momento em que Juan Diego abre o ayate diante do bispo Juan de Zumárraga. (Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo)
Estátua no Santuário de Guadalupe mostra o momento em que Juan Diego abre o ayate diante do bispo Juan de Zumárraga. (Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo)

Os olhos revelam o segredo

Uma segunda frente de pesquisa se abriu no século passado, graças ao surgimento da fotografia. Em 1951, o desenhista José Carlos Salinas Chávez examinava imagens do manto quando percebeu a existência de um busto dentro dos olhos da Virgem. Imediatamente, ele procurou os responsáveis pelo santuário de Guadalupe e as autoridades eclesiásticas, que confirmaram a descoberta. Na verdade, pode ter sido uma redescoberta, se considerarmos os relatos de que já em 1929 o então fotógrafo oficial da basílica, Alfonso Marcué, havia visto o mesmo busto, mas fora aconselhado a não divulgar nada, pois o México estava em meio à “guerra cristera”, motivada pela perseguição feroz do governo aos católicos. Além disso, fazia apenas oito anos que a imagem havia sofrido o atentado a bomba; o responsável pelo ataque de 1921, Luciano Pérez Carpio, era funcionário da secretaria particular da presidência mexicana, entrou na basílica acompanhado de quatro soldados disfarçados de civis, e foi solto poucos dias depois graças à intervenção do então presidente Álvaro Obregón.

Independentemente de quem tenha sido o primeiro a ver o busto, foi o aviso de Salinas que disparou uma segunda onda de pesquisas, desta vez tendo oftalmologistas e cirurgiões oculares à frente. O que eles descobriram, em análises repetidas ao longo de décadas, era impressionante: somando-se as imagens nos dois olhos da Virgem, o busto aparecia três vezes, nos locais exatos correspondentes aos chamados “reflexos de Purkinje-Sanson”, ou seja, estão exatamente onde deveriam estar e com as mesmas deformações previstas por leis da óptica que só foram descobertas cerca de três séculos após o surgimento da imagem da Virgem no manto de Juan Diego. Como se não bastasse, os especialistas resolveram apontar seus oftalmoscópios para os olhos da imagem e perceberam que eles “reagiam” à luz com um reflexo “impossível de se obter de uma superfície plana e, além disso, opaca”, como disse o médico Rafael Torija Lavoignet, que concluiu: “os olhos da santíssima Virgem de Guadalupe dão a impressão de serem vivos”.

Engenheiro da IBM encontrou nada menos que 13 figuras humanas no minúsculo espaço dos olhos da Virgem de Guadalupe

Marcué, Salinas e os oftalmologistas viram um busto com barba nos olhos de Nossa Senhora – Salinas acreditava que o homem era Juan Diego –, mas as tecnologias de digitalização de imagens permitiram ver que havia muito mais. O engenheiro peruano José Aste Tönsmann, da IBM, recém-chegado ao México em 1979, começou a ampliar e analisar fotos dos olhos da Virgem como curiosidade, para encontrar o tal “homem com barba” de que ouvira falar; além dele, descobriu também uma mulher negra, quatro homens – um índio sentado, um idoso, um outro homem próximo ao idoso, e um homem com feições astecas (este último, e não o homem com barba, seria Juan Diego) – e uma família indígena com pai, mãe, três crianças e mais dois adultos. No total, são 13 figuras humanas em um espaço minúsculo.

Com exceção deste último grupo familiar, todos os demais personagens se encaixam na cena em que Juan Diego mostra seu ayate ao bispo Juan de Zumárraga, que tinha uma escrava negra e recorria a um padre como tradutor, pois não falava o náhuatl. As demais figuras, como o índio sentado e o homem com barba, poderiam ser criados ou o mordomo do bispo; eles são mencionados no Nican mopohua, o mais antigo relato do milagre de Guadalupe.

É claro que aquilo que vale para o Sudário vale também para o manto de Guadalupe: se um dia for comprovado que ele não tem origem milagrosa, isso em nada abalaria a nossa fé. Mas, enquanto não houver explicação possível para as imagens, os dois tecidos continuam a oferecer um desafio formidável aos cientistas e, principalmente, aos céticos em geral.

Para saber mais sobre Nossa Senhora de Guadalupe

Eu me baseei em três livros para esta coluna. Os mistérios do manto sagrado, de Augusto Pasquoto, tem um resumo das pesquisas científicas feitas no manto; uma contextualização da época em que a aparição ocorreu, em meio à conquista espanhola do México; algumas reflexões pessoais do autor, especialmente sobre a família que aparece nos olhos da Virgem; e uma tradução integral do Nican mopohua (que também está presente em O mistério de Guadalupe). Descubrimiento en los ojos de la Virgen de Guadalupe foi escrito por Carlos Salinas Saucedo, filho do desenhista José Carlos Salinas Chávez. O título é autoexplicativo: o livro trata apenas das pesquisas sobre o busto com barba, e está repleto de fotografias e de fac-símiles de documentos, atestados e relatos de quem examinou os olhos da imagem. Como não poderia deixar de ser, Salinas Saucedo faz uma defesa enfática do pioneirismo do pai na descoberta. Por fim, o belo Our Lady of Guadalupe – mother of the civilization of love trata da parte científica apenas brevemente, pois seu foco está mais na aparição em si, e no seu significado naquela época e hoje, fazendo um mergulho na cultura dos povos nativos que nos ajuda a entender melhor o poder visual e simbólico da tilma e de todo o episódio. Um dos autores, o padre Eduardo Chávez, foi o postulador da causa de canonização de São Juan Diego.

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