Em outubro de 2021, Incra fez entrega simbólica de títulos de propriedade rural para famílias assentadas no estado de São Paulo| Foto: Divulgação / Ministério da Agricultura
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Na sexta-feira (5), em Londrina, no Norte do Paraná, 179 famílias receberam títulos de propriedade de terra em assentamentos originários de antigas invasões do Movimento dos Sem-Terra (MST). Seria uma etapa natural no processo de reforma agrária, prevista no Estatuto da Terra, não fosse a resistência do MST em aceitar a concessão de documentos aos assentados, que foi acelerada pelo governo federal.

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Há cinco meses, quando o ex-presidente Lula visitou os assentamentos Eli Vive I e II, onde agora serão entregues os títulos, o ex-governador do Paraná, Roberto Requião, novamente candidato ao cargo nas próximas eleições, desaconselhou os ex-sem-terra a aceitarem os títulos de propriedade. “Pessoalmente, só aceito um título de propriedade quando existir um trabalhador sem a possiblidade de ter a terra e de produzir os alimentos, se me apresentarem um título de propriedade assinado por Deus e com firma reconhecida. Os valores cartoriais, a propriedade consagrada acima do interesse das pessoas, tem que ser rejeitada”, afirmou.

Além da propriedade da terra, títulos abrem acesso a mais crédito

O que é rejeitado de forma veemente pelos líderes do movimento e políticos de esquerda, no entanto, tem sido aceito pela maioria dos principais interessados, os assentados e suas famílias. Todos os que vão receber os títulos se candidataram para isso, e seus processos passaram por análise de uma força-tarefa do Incra que ficou dez dias nos acampamentos, no início de julho. Na ocasião, também foram verificados dados para aplicação de créditos de fomento e de habitação.

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Com a titulação nos assentamentos de Londrina, serão 374 mil títulos de propriedade entregues aos agricultores em três anos e meio da atual gestão do Incra. É mais do que todo o período entre 2000 e 2016, que inclui três mandatos de governos petistas. No Paraná, de 2019 a 2022 foram entregues 10.848 documentos titulatórios em assentamentos, contra 1.655 nos dois mandatos de Lula, 4.411 no período de Dilma Rousseff e 3.871 sob o governo de Michel Temer.

Culto à lona preta perde devotos

Nem o MST, nem o Partido dos Trabalhadores escondem o descontentamento com o avanço desta etapa da reforma agrária, que é a titulação das propriedades. É quase uma condição atávica do movimento social, manter a posse coletiva e indistinta, como forma de perpetuar a militância. Na homenagem a Lula, em março, nos assentamentos onde serão concedidos os títulos nesta sexta-feira, uma bandinha de camisas vermelhas puxou um samba-enredo que resume o culto à lona preta, típica de áreas invadidas, e não de propriedades autossuficientes:

“Chegou para dar a letra, somos unidos da lona preta.
Não adianta fazer careta, somos unidos da lona preta.
Sou lona preta, canto com amor.
Com fé na terra, bato o tambor, viva Paulo Freire, educador do povo, conquistando a liberdade, construindo um mundo novo”.

Assentado, com boné do MST, assina título de propriedade da terra em Londrina nesta sexta-feira (05/08/22), apesar da orientação em contrário do movimento| Foto: Divulgação / Incra

Em junho, Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Sem-Terra (MST), já havia reclamado da política de entrega de títulos de propriedade aos assentados: “O governo tenta empurrar goela abaixo um título privado. Com seis meses de titulação a terra pode ser vendida e novamente concentrada pelo latifúndio. Nosso princípio é de que a terra conquistada jamais pode ser vendida”. A alegação de retorno da terra aos latifúndios não se sustenta porque há previsão legal contra isso, conforme a Lei 13.465/2017: “Após transcorrido o prazo de inegociabilidade de dez anos, o imóvel objeto de título translativo de domínio somente poderá ser alienado se a nova área titulada não vier a integrar imóvel rural com área superior a quatro módulos fiscais”.

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Títulos vão contra a lógica de manutenção da dependência, diz Incra

Geraldo de Melo Filho, presidente do Incra, em entrevista recente a esta Gazeta do Povo, relatou como vê a resistência dos movimentos sociais em concordar com a titulação das famílias. “Na verdade, eles nunca quiseram que se titulassem as pessoas, o que, por si, tem uma lógica da manutenção da dependência dessas pessoas. A qualquer momento esses não titulados poderiam ser retirados de seus lotes, às vezes com violência. E na hora em que você titula, esse poder deixa de existir”, afirmou.

Em muitos assentamentos, há uma mescla de famílias ligadas ao MST e a outros movimentos. A titulação no Norte do Paraná, contudo, tem forte ligação com o MST. E ganha em significado simbólico por ser no estado onde nasceu o movimento, em 1984, em Cascavel. À época da criação dos assentamentos, em 2010, o site da Prefeitura de Londrina, administrada por Barbosa Neto – que acabou cassado por utilizar vigias da prefeitura em rádio da família – informou que entre os critérios dos que receberam a terra estava a “fidelidade ao MST”.

Assentamentos estão entre os mais próximos de área urbana no País

Os assentamentos Eli Vive I e Eli Vive II surgiram um ano após a invasão das fazendas Guairacá e Pininga, em 2009, que acabaram compradas pelo governo federal por R$ 78 milhões. As terras ficam no distrito de Lerroville, a 50 km do centro da cidade. No total, são 5.826 hectares onde moram 393 famílias (Eli Vive I) e 1.486 hectares onde vivem outras 115 famílias (Eli Vive II).

Os assentamentos hoje possuem a Cooperativa Agroindustrial de Produção e Comercialização Conquista (Copacon), que atua produzindo hortaliças e feijão, e uma agroindústria de derivados do milho livre de transgênicos. A produção de leite é transportada para a Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), localizada no assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas, a 56 km.