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Lula e o presidente argentino Alberto Fernández.
Lula e o presidente argentino Alberto Fernández.| Foto: EFE/ Juan Ignacio Roncoroni

Discurso do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em um comício em Taboão da Serra, São Paulo, no último dia 10: “Eu quero é que vocês possam entrar no açougue e comprar carne. Por isso nós vamos ter que discutir o preço da carne nesse país. Nós vamos discutir se vai continuar só exportando ou se vai deixar um pouco para nós comermos”.

A frase “vamos discutir se vai continuar só exportando” está fora da realidade da cadeia de carne bovina brasileira. Mesmo em 2022, um ano histórico de baixo consumo no mercado interno, entre 65% e 70% da carne vermelha está sendo servida no próprio país, contra cerca de 30% exportada.

Intervir no mercado, regulando ou proibindo exportações, é uma prática atualmente adotada na Argentina, com resultados negativos para a economia. A arroba do boi gordo está cotada na Argentina a US$ 66,00, contra US$ 55,00 no Brasil. Levantamento do Instituto de Estudos sobre a Realidade Argentina e Latino-americana (IERAL) mostrou, mês passado, que o país vizinho perdeu para o Brasil o título de país latino-americano com carne bovina mais barata. Em dólar, desde meados de 2020, o preço da carne aumentou 20% na Argentina, contra 5% no Brasil.

Em que pese o exemplo argentino desabonar a ideia, será que limitar as exportações pode fazer mesmo “sobrar um pouco de carne” no mercado interno? Sobre o tema, a Gazeta do Povo ouviu quem lida diariamente com essa cadeia produtiva.

Restringir exportações diminui carne no campo e na mesa

Em vez de sobrar, pode faltar. Os argentinos convivem com novos limites às exportações de carne desde maio de 2021. Estão suspensos os embarques de sete cortes de carne bovina até o final de 2023, sob o pretexto de reservar o produto para o mercado interno. É a repetição de uma estratégia adotada em 2006, que acabou reduzindo o rebanho do país, sem resolver o problema de preços e consumo. Os preços caem num primeiro momento, depois de alguns meses voltam a subir. Há cem anos, desde 1920, o consumo de carne per capita não chegava a níveis tão baixos no país vizinho.

“A Argentina é um exemplo clássico de que essa política dá muito errado. O consumo per capita caiu de 68 kg para 41 kg. E se pegar os números atualizados, em 2022, por causa da crise, deve estar por volta de 37kg ou 35 kg per capita. O que aconteceu? Os produtores argentinos liquidaram o rebanho. Além do preço da carne ter subido e o consumo ter caído, houve uma quebra da indústria argentina. Menos gente empregada, menos recolhimento de impostos, menos investimentos”, aponta Lygia Pimentel, diretora da consultoria Agrifatto, de São Paulo (SP).

A carne é uma commodity, lembra a analista, e como tal não é possível “combinar com o custo de produção quanto que ele vai subir”. “Se a gente tem um problema com fertilizante ou milho, o preço explodir e precisar remunerar mais o produtor, havendo um limite ao escoamento, ele fica defasado. Formação de preço envolve milhares de fatores que interferem na oferta e na demanda. Então, quando você planifica, normalmente costuma dar muito errado”, completa Pimentel.

Restrições empobrecem toda cadeia produtiva da carne

Uma análise do Instituto de Estudos Econômicos da Sociedade Rural Argentina calculou que somente nos primeiros quatro meses de restrições às exportações, a partir de 15 de abril de 2021, o país perdeu 8 milhões de dólares por dia. "Perdemos os produtores, os trabalhadores, os empresários, os frigoríficos, os consumidores, os provedores de insumos e serviços, entre outros participantes da cadeia produtiva. Não dá para entender porque se impõem cotas às exportações, se isso nos empobrece a todos", disse Nicolas Pino. Meses depois, o governo confirmou a política restritiva de exportações de carne bovina por mais dois anos, até o fim de 2023.

O exemplo argentino é também destacado por Fernando Henrique Iglesias, consultor da agência Safras e Mercado em Curitiba (PR). “O impacto é de médio e longo prazo. O pecuarista fica desalentado com a atividade, porque ele deixa de ganhar dinheiro quando você bloqueia as exportações. Ele começa a aumentar o descarte de matrizes, de fêmeas, e começa a reduzir o investimento no plantel. Com isso, no médio-longo prazo, você acaba gerando um gargalo de oferta, em que vai ter um menor ritmo de nascimento de bezerros e boi magro. Os preços acabam subindo”, observa.

Gado Nelore pastando em fazenda de Campo Novo do Parecis, Mato Grosso, 2019
Gado Nelore pastando em fazenda de Campo Novo do Parecis, Mato Grosso, 2019| Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo

Por que o preço da carne subiu tanto no Brasil?

A pecuária de corte brasileira funciona tradicionalmente de forma cíclica: há um aumento dos abates das matrizes do rebanho quando os preços estão elevados. Como consequência, a oferta sobe e os preços caem. Em seguida vem um novo gargalo na oferta, porque menos matrizes geram menos bezerros para renovar o plantel. E assim, retoma-se o ciclo. “Preço sobe, investe, aumenta a produção. Preço cai, desinveste, cai a produção”, explica Lygia Pimentel. São ciclos que levam pelo menos o tempo de vida de um boi, ou seja, cerca de 3,5 anos.

Dessa forma, para entender o cenário atual de preços e oferta no Brasil, é preciso olhar para alguns anos trás. Segundo a analista da Agrifatto estamos vivendo ainda hoje as consequências da Operação Carne Fraca, em 2017, e do Joesley Day (como ficou conhecido na Bolsa de Valores o dia em que se divulgou uma conversa comprometedora entre Joesley Batista, da JBS, e o então presidente Michel Temer). Os dois escândalos aconteceram num momento de baixa do boi, quando havia alta de oferta.

“A crise levou a um desinvestimento, ao abate de fêmeas. Em 2020 e 2021 nós vivemos um reflexo daquele desestímulo”, observa Pimentel. Conforme o ciclo pecuário, a fase de 2020-21 seria consequentemente de menor oferta, com preços elevados para estimular o pecuarista a produzir mais. Mas nessa mesma época, a China veio às compras no Brasil com mais apetite, por causa dos estragos da peste suína africana. Assim, somados os dois fatores e o cenário internacional de inflação, os preços dispararam. “O mercado veio buscar no Brasil, mas não tinha oferta, não tinha gado para ser abatido. O abate foi o mais baixo desde 2003”, relata Pimentel.

Boi-China: asiáticos preferem cortes dianteiros

O mercado chinês não é considerado "prime" para a carne, está num nível intermediário, mas com exigências específicas conhecidas como "boi-China". O animal tem que ser mais jovem, no máximo 3 anos, e precisa passar por confinamento de 90 a 120 dias antes do abate. Do ponto de vista de aproveitamento da carcaça, a preferência dos chineses é complementar ao gosto brasileiro: eles apreciam carnes dianteiras (cupim, acém, paleta e peito), enquanto no Brasil fazem mais sucesso os cortes traseiros, como picanha, contra filé, fraldinha e coxões.

Atualmente, o preço médio do quilo da carne vendida para a China está em R$ 52,32, uma alta de 23% em relação aos preços praticados em setembro de 2021. "Neste ano, quase 67% do que exportamos até agora, em faturamento, foi para a China. A chance de queda de exportações para China é muito pequena porque o chinês mais jovem tem preferido a carne bovina, enquanto a carne suína está ligada aos mais velhos, à questão do costume", aponta Jessica Olivier, analista de mercado da Scot Consultoria, de Bebedouro (SP).

A boa notícia é de que o ciclo da carne bovina está entrando num momento de alta de oferta e recuo de preços. “O preço do boi está caindo. O varejo vai manter o preço para recompor suas margens, mas não vai mais subir. Até porque a oferta não vai deixar. Já estamos vendo um aumento da oferta de animais abatidos. E depois que o animal foi abatido, ele vai para o varejo e precisa logo ser comercializado. Essa carne vence, é perecível", sublinha Lygia Pimentel.

Em 2023 preço da carne não deve subir no Brasil

"Se a gente conseguir retomar emprego e controlar inflação, e parece que já estamos nessa linha, o consumo per capita deve subir amparado pelo aumento da produção. Quem vai absorver essa produção majoritariamente é o consumidor interno, são aqueles 70% que talvez cheguem a 72% ou 74% da participação total”, completa.

Mesma perspectiva vê Iglesias, da Safras e Mercado. Em 2023, a tendência é de que haja uma maior oferta das três proteínas de origem animal mais consumidas: carne suína, bovina e frango. Em 2019, quando os preços no mercado interno descolaram e as exportações cresceram, o pecuarista “se viu animado a investir no rebanho”, diz Iglesias. “Ele começou a segurar matriz, começou a reduzir o abate de fêmeas, e isso está resultando em aumento de capacidade produtiva agora em 2022 e vai trazer impacto positivo em relação a oferta de animais de reposição em 2023. Por ter mais oferta de bezerros, a tendência é que os preços caiam. Com os preços mais baixos, o pecuarista que até então estava investindo no rebanho passa a aumentar o abate de matrizes, e isso vai aumentar a oferta. Haverá mais fêmeas indo para o abate e como consequência disso nós vamos ver um volume maior de oferta de carne bovina”. É o tal do ciclo, se repetindo.

Exportação é aliada do país, e não vilã

Em 2022, a inflação foi um problema crônico mundial, não apenas brasileiro. A alta dos combustíveis e das commodities agrícolas acabou onerando todas as cadeias produtivas. Antes de ser vista como vilã, a exportação de carne é, na realidade, uma aliada do país. “O Brasil nunca conseguiu uma receita tão grande em exportação de proteína animal como em 2022. Do ponto de vista das contas públicas, manter uma balança comercial superavitária é interessante. Colocar mais carne à mesa do brasileiro vai depender muito das políticas que a equipe econômica vai adotar para o próximo ano, a estratégia para conter a inflação, para criação de emprego, elevação da renda média. Tudo isso é importante para recuperar o poder de consumo que, infelizmente, foi perdido nesse ano de descontrole inflacionário”, conclui Iglesias.

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