Futebol, samba e cerveja: o trio das paixões nacionais, certo? Nem tanto. Embora ostente o título, esse não é necessariamente o caso da nossa “gelada”. Ela pode até ser paixão, mas não é nacional. Diferente do futebol, que mesmo não tendo sido inventado por aqui foi adaptado ao nosso jeito de jogar, não existe uma escola cervejeira com selo tupiniquim.
A escola alemã, por exemplo, é regida pela pureza de ingredientes (garantida por lei, inclusive) e pela imensa variedade de cervejas do tipo lager; já a escola inglesa passou a ser conhecida mundo afora pelas bebidas stout, escuras e, geralmente, menos alcoólicas.
Já o Brasil... Bom, o Brasil importa estilos e ingredientes. Mas, se depender da ciência, essa “crise de identidade” não deve durar muito tempo.
Cerveja brasileira
Renata Furlan é pesquisadora da Esalq, braço agronômico da Universidade de São Paulo (USP). Durante mais de quatro anos, ela estudou em seu doutorado como as leveduras – um tipo de fungo que, ao lado de malte, lúpulo e água, compõe a receita básica da cerveja - interferem no aroma e sabor da bebida, usando única e exclusivamente organismos “brasileiros”.
“A levedura se reproduz em ambientes que têm açúcar, é o alimento dela. É a levedura que realiza a fermentação, produzindo etanol, gás carbônico e uma série de compostos que interferem no sabor e aroma”, esclarece Renata. “Nós fomos dentro da biodiversidade do Brasil, que é imensa. Buscamos essas linhagens no ambiente produtivo do bioetanol. Geralmente, esse processo é realizado em condições sem assepsia total, isso permite que leveduras selvagens adentrem esse ambiente.”
Depois das fases de seleção, avaliação e caracterização, ela chegou a cinco leveduras nacionais com a aplicação que tinha planejado no início da pesquisa. “Algumas conferiram aromas de frutas passas, bananas e especiarias. Outras trouxeram notas de frutas frescas e cítricas, bastante desejáveis nas cervejas especiais”, conta.
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Como na lista de ingredientes essenciais da cerveja, a levedura é a que oferece mais possibilidades de inovar (elas existem às centenas, livres na natureza), essa pode ser uma das apostas na criação da tal escola cervejeira do Brasil. “Elas dão regionalidade ao produto. A cerveja especial tem todo um caráter de personalidade, aroma e sabores diferenciados”, frisa a pesquisadora.
E quem faz cerveja especial sabe o desafio que é levar ao público um produto diferente de tudo o que ele já provou. Na Way Beer, que fica em Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba, cerca de 70 tipos de cerveja já saíram dos tanques, desde que a microcervejaria foi inaugurada há sete anos. Alguns com um toque nacional – uma fruta típica, por exemplo – mas nenhum com um autêntico jeitinho brasileiro (no bom sentido, é claro).
“Nós fazemos cerveja do mundo inteiro, mas não tem uma brasileira, uma forma de desenvolver, com levedura local”, diz Alessandro Oliveira, mestre cervejeiro e um dos sócios da Way. “Espero que a gente consiga criar isso e ter representatividade fora do Brasil, com essas leveduras isoladas aqui.”
Tiro certo
As frutas, aliás, apontam um possível caminho para um estilo próprio. Terceiro maior produtor de frutas do mundo, o Brasil tem no exotismo delas um diferencial. “Dentro desse nosso trabalho de cerveja artesanal, tentamos nos diferenciar de alguma forma. Exportamos para os Estados Unidos, mas só as que têm ingredientes brasileiros (frutas ou que são maturadas em madeira brasileira)”, salienta Alessandro.
Sócio da Bio4, empresa de Curitiba especializada no cultivo e fornecimento de leveduras, o engenheiro de bioprocessos Marcelo Barga destaca que, no exterior, já se fala da Catharina Sour como uma cerveja tipicamente brasileira. Como o nome dá a entender, ela nasceu em Santa Catarina e é feita à base de trigo, marcada pela acidez e presença de frutas regionais. “O Brasil é muito rico em leveduras, ervas, plantas. Hoje, uma das cervejas que mais se exporta é a de caju. E de onde vem o caju?”, pontua. “Existe uma pressão por parte de várias cervejarias para que se tenha um estilo reconhecidamente brasileiro, mas isso é uma questão de tempo.”
Tempo e identidade. Marcelo comenta que, para muitos cervejeiros, o essencial é que a bebida seja boa. De onde vêm os ingredientes? Outra história... “Mas isso está mudando, com o crescimento, com essas diferenciações”, pondera.
E é aí que entram pesquisas como a de Renata Furlan, ajudando a mostrar que é possível ser diferente – e bom – com o que se encontra por aqui. “A maior parte das leveduras disponíveis tem origem estrangeira, nos países onde a cultura é muito tradicional, como Bélgica, Alemanha e Estados Unidos”, diz ela. “Esses países são exemplos, aprendemos muito com eles, é uma tradição que eles têm e nós temos condições de ter nossas próprias características, com nossos próprios insumos. Estamos dando passos muito certeiros na criação de uma escola cervejeira brasileira.” Quando se chegar lá, ninguém vai ter dúvidas do que beber para brindar.