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Nova reforma agrária pode enquadrar governo Lula na Lei de Responsabilidade Fiscal
| Foto: Flick / MST

O governo do PT revogou uma medida do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de 2019, que condicionava o avanço da desapropriação de terras à existência de recursos no Orçamento para indenização dos proprietários.

Ao retirar essa trava, Lula acena com a repetição do modus operandi de anos anteriores, em que grandes áreas de terras foram desapropriadas sem previsão de recursos no Orçamento e a conta foi deixada para outros pagarem. Outros, nesse caso, foi o governo Bolsonaro, os cofres da União, que nos últimos quatro anos teve que quitar R$ 6,2 bilhões em precatórios do INCRA, de áreas adquiridas sem lastro orçamentário.

“Está se criando o ambiente exatamente para se voltar a fazer o que era feito. Ou seja, comprar terras, entre aspas, sem que haja de fato orçamento ou recurso para que se pague esse investimento. E isso não pode. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, nos artigos 15 e 16, diz que, mesmo que para emissão de precatório, tem que ter orçamento. Esse é o ponto. E o orçamento do Incra deste ano para aquisição de terras é de pouco mais de R$ 2 milhões. No Brasil real, estamos falando de 300 hectares de terra no máximo, não dá para fazer nada”, diz Geraldo Melo Filho, presidente do Incra na gestão de Jair Bolsonaro.

Encontrar áreas improdutivas no Centro Sul é difícil

Confira, na íntegra, a entrevista do economista Melo Filho à Gazeta do Povo.

O presidente Lula anunciou que pretende criar “prateleiras de terras improdutivas”. Isso é algo factível, viável? Há dinheiro para isso? Existem terras nessas condições?

Você disse o ponto chave disso tudo. Acho que no momento em que o presidente fala sobre prateleiras de terras improdutivas, ele entendeu que essas terras, uma vez improdutivas, elas não implicariam custos. E na verdade elas implicam custos. O grande problema do Incra para agregar áreas novas ao processo de reforma agrária é orçamentário.

Existem duas situações a partir do que ele colocou. A primeira é encontrar áreas improdutivas. No Brasil real hoje, em que o agro deu esse grande salto de produção e de produtividade, encontrar grandes áreas improdutivas no Centro-Sul é uma tarefa difícil. Até porque, onde você encontrar provavelmente tem alguma causa. A terra valorizou muito, ninguém tem um bem tão valorizado e deixa sem produzir por opção. Normalmente ocorre algum problema, espólio, partilha de bens, a disputa de alguma coisa. E isso não se aplica, via de regra, nos imóveis encontrados.

Não há nenhum erro em pedir para o Incra fazer o levantamento. O problema é que o Incra utiliza nessa informação de improdutividade dados declarados no Sistema Nacional de Cadastro Rural. É provável que algumas das informações que estejam lançadas e que levem a uma possível improdutividade no cadastro sejam informações defasadas, porque você não precisa fazer essa atualização permanentemente.

Estado não pode simplesmente tomar terras

O que de fato vai declarar a improdutividade é a vistoria. Acho muito pouco viável que se encontre um volume significativo de terras improdutivas, depois de um processo de vistoria. E mesmo que se encontre, tem um problema principal. Você precisará de orçamento. Essas terras não são simplesmente tomadas pelo Estado. Mesmo terras improdutivas precisam ser desapropriadas, com o pagamento a vista das benfeitorias e em Títulos de Dívida Agrária (TDAs) da parte da terra. O que implica em necessidade de orçamento. Então, mesmo havendo uma eventual prateleira, para que ela seja acessada é preciso pagar por esses imóveis. Não é porque o imóvel é improdutivo que o Estado vai lá e toma. É um bem privado como qualquer outro. Então, precisa ser pago.

O segundo ponto envolve terras devolutas. Isso é uma possibilidade, sim. Só que tem um problema ao se entender que terras devolutas sejam terras públicas. Por que terra devoluta, na verdade, no conceito, são áreas não arrecadadas. Por que existe um processo de arrecadação da União de terras que ainda não foi feito. Terras com essas características hoje só vão ser encontradas, 98% ou 99%, no bioma amazônico.

O Estado brasileiro tem terras públicas que possam destinar a um programa de reforma agrária? Tem. Onde? Na Amazônia. A pergunta é: Onde estão essas pessoas que pretendem ser assentadas, que sonham com seu pedaço de terra? Estão aqui no Centro-sul. Essas pessoas estão dispostas a se mudar para a Amazônia, para receber um lote onde só vão produzir em 20%? O governo vai encaminhar um processo massivo de novas ocupações dentro do território da Amazônia legal?

Geraldo Melo Filho foi presidente do Incra no governo de Jair Bolsonaro
Geraldo Melo Filho foi presidente do Incra no governo de Jair Bolsonaro| Valter Campanato/Agência Brasil

Lotes vazios por falta de interessados

Primeiro, acho pouco provável que as pessoas queiram ir para a Amazônia. Segundo, eu não sei se há essa necessidade. No estado do Pará, num levantamento feito recentemente, existem dezenas de milhares de lotes de reforma agrária já constituídos, sem destinação, por falta de ocupantes formais. Não é uma questão de ter apenas a terra. É a terra estar disponível onde eventualmente existe essa demanda qualificada.

E essa demanda, para ser atendida pelos critérios que o presidente citou, essa prateleira, precisa de orçamento se for para aquisição de terras aqui no Centro-Sul. Ou precisa de pessoas dispostas a mudar para o bioma amazônico, basicamente, para ocupar essas terras públicas.

E aí eu adiciono um ponto a mais. O governo brasileiro, desde Fernando Henrique Cardoso, ou seja, do segundo plano nacional de reforma agrária pra frente, já fez mais de 3.500 assentamentos na região da Amazônia. Levou para essa região quase 500 mil famílias. Estamos falando de 2 milhões de pessoas que foram colocadas na zona rural da Amazônia para produzir sem estrutura, sem nenhum tipo de apoio, enfrentando todo tipo de dificuldade. Então, vamos ampliar isso? Isso leva ao que ao que a gente sabe que acontece. Colocar essas pessoas no meio da Amazônia, sem condições de produção, de escoamento de produção, elas vão terminar aumentando o desmatamento, se não tiverem o apoio necessário. Não sei se é isso que o governo pretende fazer.

O custo-benefício seria muito baixo diante da renda que essas famílias poderão retirar da terra no bioma amazônico?

Nós fizemos um trabalho no Incra no ano passado, usando dados do censo agropecuário de 2017. Dados de renda agropecuária. Quando você assenta uma família dentro de uma terra, por princípio, a intenção é que aquela terra que não estava produzindo passe a produzir.
Especificamente no bioma Amazônia, em praticamente todos os municípios onde tem assentamentos, a renda média das famílias assentadas é inferior a meio salário mínimo. Você desloca essas pessoas para um local longe da infraestrutura urbana, ou seja, onde não tem hospital, não tem segurança, não tem educação – você complica inclusive a vida dos municípios. Coloca as pessoas na terra, não dá condição para elas produzirem. Elas têm essa renda, que na verdade é uma não-renda, e termina tendo que dar a essas pessoas um tipo de suporte, de assistência e de programas sociais, que não faz sentido, não compensa você ter feito o investimento de colocá-las no meio rural.

Há um descompasso entre a ideia da política com o efeito prático dela, em especial ao se levar as pessoas para longe. São inúmeros casos: quando você faz um processo de seleção para assentamentos que são mais distantes das cidades, você tem dificuldade de fechar a seleção das famílias. Essa é a realidade.

Desapropriar sem dinheiro para indenizar fere a LRF

Não há um risco de gastar bilhões e depois deixar a conta na forma de precatórios para governos futuros?

Sim, e tem um detalhe adicional. O governo passado teve que pagar R$ 6,2 bilhões de contas de desapropriações anteriores feitas e não pagas. Por essa lógica de se fazer desapropriação sem ter o recurso. Ou seja, vai fazendo e depois alguém paga. Alguém é o Estado brasileiro em outro momento. Mas tem um elemento adicional. No início do governo passado, ainda em 2019, foi editado pelo Incra o Memorando Circular 01, objeto de muitas críticas dos partidos de esquerda na ocasião. Esse memorando basicamente dizia que todos os processos não concluídos de desapropriação de áreas, exceto área pública ou sem ônus para o Estado, para que tivessem prosseguimento precisavam que a sede atestasse a existência de orçamento. Exatamente para se parar de fazer desapropriação e não ter como pagar.

A lei de responsabilidade fiscal diz que se você vai estabelecer uma despesa tem que indicar de onde virá esse orçamento ou essa receita. O que o Incra fez em 2019? Para que eu faça qualquer processo de desapropriação, eu primeiro preciso checar e dizer: siga adiante, por que existe orçamento. Isso é responsabilidade fiscal. E assim foi feito.

Por que é que eu estou falando do Memorando 01? Ele vigorou, os partidos de esquerda foram ao judiciário, entrou-se até com ADPF no Supremo questionando isso tudo. E nada prosperou no judiciário, porque na verdade está-se cumprindo a lei.

O orçamento do Incra deste ano para aquisição de terras é de pouco mais 2 milhões de reais. No Brasil real, estamos falando de 300 hectares de terra no máximo, é uma coisa muito pequena, não dá para fazer nada. E o que eles fizeram cerca de um mês atrás? Foi revogado o Memorando 01. Então, está se criando o ambiente exatamente para se voltar a fazer o que era feito. Ou seja, comprar entre aspas terras sem que haja de fato orçamento ou recurso para que se pague esse investimento. E não pode. A própria lei de responsabilidade fiscal nos artigos 15 e 16 diz que mesmo que para emissão de precatório, tem que ter orçamento.

Reforma agrária não é só colocar em cima da terra

Não é que a reforma agrária tenha deixado de ser prioridade. A reforma agrária é um conjunto de ações, que normalmente se inicia com a desapropriação e a criação de assentamentos, mas passa pela infraestrutura, pelo desenvolvimento do assentamento e por sua consolidação. Isso está no Estatuto da Terra, de 1964, não é invenção minha. Essas são as etapas da reforma agrária.

O governo passado continuou pagando as contas anteriores dessa parte inicial de criação de projetos de assentamentos, porém investiu na parte de desenvolvimento e consolidação. Com a titulação e com investimento na infraestrutura. Esse foi o foco. Tentar melhorar a qualidade de vida e a produção de quem já está assentado. Tem quase 1 milhão de famílias assentadas, 87 milhões de hectares em áreas de assentamento no Brasil. Isso é muito mais do que a área que produz a safra de grãos brasileira. Então, o problema não é a quantidade de terras. O que eles estão fazendo é voltando a entender que a reforma agrária é só esse primeiro pedaço. Ok, mas já que a prioridade vai ser isso, coloque o orçamento necessário para fazer essa despesa. Porque, se não, estará desrespeitando a lei de responsabilidade fiscal. Isso é base.

Diante do atual perfil da produção agropecuária brasileira e da ocupação territorial do país, ainda há necessidade de novos lotes de reforma agrária? Ou diminuiu a quantidade de gente com potencial e vocação para ser agricultor, assim como diminuiu a disponibilidade de terra?

Certamente diminuiu e é uma tendência. Se você for procurar hoje mão de obra para trabalhar em empreendimento agropecuário, você tem dificuldade. Em qualquer região do Brasil, não estou falando específico do Paraná, Mato Grosso, Goiás, em qualquer região, no Nordeste mesmo, você hoje tem dificuldade de encontrar pessoas que estejam dispostas a trabalhar. Há diminuição muito grande nessa demanda.

Há crédito para quem sonha em trabalhar na terra

Não enxergo essa pressão enorme de pessoas sonhando com esse movimento de receber esse pedaço de terra. Além do que, existem outros instrumentos, além da desapropriação de terra, que poderiam estar sendo utilizados. Como por exemplo, existe o crédito fundiário, o antigo Banco da Terra, em que qualquer grupo de pessoas pode se juntar e buscar o recurso para adquirir uma propriedade, e daí não precisa passar pelo Incra, não precisa passar por nada. É uma operação de compra e venda, extremamente vantajosa para quem faz essa operação, por que o juro é muito baixo, tem um rebate enorme sobre as parcelas, e aí sim, não tem conflito, é compra e venda. E resolve para quem de fato está querendo produzir.

O problema da seleção de famílias é um negócio extremamente sério, os assentamentos que de fato evoluíram são os assentamentos que contam com famílias que têm o perfil de produção, e não o sonho de ter um pedaço de terra para construir uma casa para morar, de ser morador rural.

Esse processo, a qualificação do processo de seleção, para garantir que somente pessoas que tenham de fato aptidão para produção sejam assentadas, é a chave para ter assentamentos produtivos ou improdutivos. E a gente sabe que historicamente essa expansão desmedida do volume leva a um processo de seleção que termina por colocar pessoas que não tem aptidão, que terminam vendendo seus lotes.

Veja memorando revogado que vedava desapropriações sem lastro no Orçamento

Leia abaixo trecho do Memorando-Circular 01/2019/Sede/Incra, de 27 de março de 2019, assinado pelo ex-presidente do Incra, general João Carlos de Jesus Corrêa, e revogado em 18 de abril de 2023 por César Fernando Aldrighi, presidente do Incra no governo Lula:

"Considerando a insuficiência de recursos orçamentários previstos na LOA 2019 para o Programa 211B, Ações 002, 003 e 004, que se remetem a indenização e/ou pagamentos de imóveis rurais para fins de reforma agrária, orientamos a necessária e expressa suspensão das atividades de vistorias de imóveis rurais para fins de obtenção, como também os processos administrativos em fase de instrução, evitando-se a expectativa de compromissos que não poderão ser cumpridos. Essas medidas deverão ser adotadas de imediato, pois a continuidade de processos de vistoria sem a devida disponibilidade orçamentária pode ensejar interpretação de responsabilização por parte de órgãos de controle".

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