Para mitigar as emissões de gases de efeito estufa, a Dinamarca encontrou uma solução à moda do ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad: decidiu baixar um novo imposto sobre os pecuaristas, apelidado de “taxa do arroto do boi”. O custo será próximo de 100 euros por vaca (cerca de R$ 610), por ano, a partir de 2030.
O país nórdico detém um rebanho bovino de 1,5 milhão de cabeças, grande parte voltado à produção de leite e exportação de lácteos. Em comparação, no Brasil são 234 milhões de cabeças, 17 milhões de gado leiteiro e todo o restante dedicado à produção de carne.
Em termos de arrecadação, se houvesse um imposto semelhante ao dinamarquês, somente as 34 milhões de cabeças de corte abatidas anualmente no Brasil gerariam uma receita de R$ 20 bilhões. Esse tarifaço confiscaria um terço do que se fatura hoje com as exportações de carne.
Apesar das reclamações dos pecuaristas, o governo dinamarquês trombeteou a iniciativa como um avanço histórico. “Seremos o primeiro país do mundo a criar um verdadeiro imposto de carbono para a agropecuária. Outros países serão inspirados com a medida”, disse o ministro da Economia da coalizão de centro-esquerda, Jeppe Bruus.
À parte o viés arrecadatório da medida, do ponto de vista ambiental seria a política dinamarquesa uma inspiração para o Brasil, como pretende o ministro Bruus?
Nova Zelândia voltou atrás em taxa do arroto
A ideia dinamarquesa não é exatamente pioneira. Antes, em 2022, a Nova Zelândia já havia anunciado a “taxa do arroto” sobre seu rebanho, mas voltou atrás em junho deste ano. O novo governo de direita preferiu focar em “ferramentas práticas e tecnologia para que nossos agricultores reduzam suas emissões de uma forma que não prejudique a produção e as exportações”.
Segundo os dados mais recentes do Sistema de Registro Nacional de Emissões (Sirene), os setores da agropecuária (28,5%) e mudança de uso do solo/desmatamento (38%) foram responsáveis por 66,5% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil (2020). Dentro da agropecuária, quase 70% dos gases poluentes vêm dos arrotos, puns e dejetos da população de bovinos.
Nessa conta, contudo, há números a somar e outros a subtrair. Na integração lavoura-pecuária, cada vez mais adotada no país, é possível colher de duas a três safras por ano numa mesma área. O plantio direto, que domina os cultivos, também deixa palhada e incorpora carbono no solo. O boi na maior parte do tempo é alimentado a pasto. Já nos países do hemisfério Norte, devido ao frio e à neve, a regra é apenas uma safra. E a criação do gado acontece predominantemente em confinamento intensivo.
Brasil passa o ano removendo carbono
“A gente está o ano todo produzindo alimento, o ano todo com produtividade primária líquida, o ano inteiro potencialmente removendo o carbono da atmosfera”, aponta Alexandre Berndt, chefe da Embrapa Pecuária Sudeste.
Berndt é representante da Embrapa na Agenda Global para Pecuária Sustentável da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Ele também integra o comitê técnico do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para elaboração do Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa.
O pesquisador não despreza a solução dinamarquesa de taxar as emissões bovinas para arrecadar recursos e investir em práticas conservacionistas. Mas entende que a estratégia não faria sentido no Brasil.
“Lá na Europa, em países já plenamente desenvolvidos, com várias demandas já atendidas, pode ser que eles possam se dar a esse luxo. Mas não vejo isso viável para nós, diante da questão da insegurança alimentar. Você taxar um setor de produção de alimento nobre, de altíssima qualidade, é um risco muito grande”, pondera Berndt. “Adicione-se a isso as características únicas da agropecuária tropical, onde a gente pode compensar as emissões de outras formas muito eficientes”, emenda.
Mais bois em área menor, mas com pasto melhor
Um estudo do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas, de setembro de 2023, comparou os resultados no sequestro de carbono de dois sistemas de produção de gado de corte.
O sistema com 2 cabeças por hectare, manejo de pasto intensificado e abate aos dois anos de idade resultou em pegada de CO2 equivalente de apenas 3 kg. Nível 50 vezes menor do que a criação de apenas uma cabeça por hectare em pastagem degradada e abate do animal “velho”, com 36 meses. Quanto mais tecnológica e avançada a pecuária, mais bovinos cabem num mesmo pedaço de terra, resultando em menor pegada de carbono.
Diferentes países possuem metodologias próprias de mensuração da emissão de gases poluentes. Isso dificulta alinhar abordagens e estabelecer uma “calculadora” das emissões agropecuárias em escala global.
“Para que outros países aceitem e adotem as métricas e metodologias nacionais, é preciso garantir que elas sejam cientificamente robustas, transparentes e imparciais. Isso requer a participação ativa em fóruns internacionais de discussão, apresentações de resultados em publicações científicas e conferências internacionais, além do compartilhamento de estudos de validação que comprovem a eficácia das abordagens adotadas”, diz o documento do Centro de Estudo do Agronegócio da FGV, assinado pelos pesquisadores Camila Estevam, Eduardo Pavão e Eduardo Assad.
Necessidade de tropicalizar as métricas das emissões
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) faz um cálculo de valor médio de emissão para a classe de bovinos de corte na América do Sul. O Brasil, contudo, já possui métricas mais detalhadas, que avaliam as emissões de gases conforme a idade de abate, o tipo de alimentação, as diferenças climáticas e de sistemas produtivos específicos em cada estado.
Se esses dados fossem levados em consideração, o efeito climático das emissões de metano, segundo a FGV, poderia ser até 86% menor que o calculado pela métrica atual. "A diferença é grande e caracteriza bem uma produção produção pecuária bem ruim, da Idade Média, extrativista. Enquanto a gente está tentando mostrar que é possível reduzir essas emissões e ter uma carne muito limpa, e já tem bastante gente fazendo isso", afirma Eduardo Assad, um dos autores do estudo da FGV, que já coordenou o Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa.
"O problema é que na Dinamarca eles querem saber a emissão do boi. Como se fizéssemos o boi em cima de uma placa de concreto. Claro que o boi em cima de uma placa de concreto, ele só emite. Mas o boi brasileiro ele é feito no pasto, e você tem que calcular o sistema de produção e não o boi. É o boi mais o pasto. Enquanto você recupera a pastagem, você está removendo mais carbono da atmosfera do que emitindo pela fermentação entérica", assegura Assad.
Necessidade de olhar o ciclo completo
A necessidade de se olhar o ciclo produtivo completo, e não apenas as emissões do animal no campo, é destacada também por Berndt, da Embrapa. “O importante não é só o lado da emissão, mas também computar a remoção. Por que a diferença é que importa, de quanto você emitiu, menos aquilo que conseguiu remover”.
“Carbono zero não existe. Mas a gente pode, sim, ter um sistema de produção de baixo carbono, tão baixo que chega a compensar completamente as emissões. E se ele for negativo, você gera um crédito para outra produção”, sublinha Berndt.
Em outras palavras, é a tal da agricultura regenerativa, que recupera as funções físicas, químicas e biológicas do solo. E que pode virar o jogo e se transformar em um sumidouro de carbono. A lógica das compensações vale também para a soja, o carro-chefe da agropecuária brasileira.
Emissões da soja são superestimadas
Outro estudo, da Embrapa, demonstrou que pelas métricas do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) as emissões da soja são superestimadas em até três vezes, se comparadas com o cálculo sobre práticas reais adotadas no Brasil.
Os parâmetros do hemisfério norte não levam em consideração efeitos redutores da emissão de gases. Como a prática de fixação biológica de nitrogênio (que reduz o uso de fertilizantes nitrogenados), o sequestro de carbono pelo plantio direto sobre a palha, a rotação de culturas, o uso de plantas de cobertura e adubos verdes, além da produção de até três safras anuais numa mesma área.
Afinal a pecuária está mais para vilão ou para mocinho na contabilidade das emissões de gases? “Nós temos os dois casos. Existem ainda sistemas de produção pecuaristas muito conservadores, extrativistas, que não adotam tecnologia e estão do lado negativo dessa história. São sim vilões, porque produzem pouco, faturam pouco, usam uma terra nobre com pouca eficiência. Isso tem diminuído bastante, porque a pecuária nos últimos 30 anos teve uma evolução tecnológica tão grande que passou a ser enxergada como uma atividade empresarial muito rentável, desde que você adote tecnologia”, sublinha Alexandre Berndt.
“Os mocinhos da história são o que utilizam o suprassumo da tecnologia, porque produzem um alimento de alta qualidade, preservando o solo e a biodiversidade, com lucratividade, empregando milhões de famílias”, conclui o pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste.
Benchmark americano: rebanho menor, mais carne
Um benchmark para a pecuária nacional está nos padrões de produtividade americanos, que com apenas metade do rebanho brasileiro conseguem produzir praticamente a mesma quantidade de carne. Essa seria a tendência para os próximos anos: um rebanho menor, que gira mais rápido e produz mais carne no mesmo intervalo de tempo.
Para que o diferencial do “boi verde” brasileiro seja reconhecido na contabilidade climática, o país ainda precisa consolidar métricas próprias de mensuração das emissões, e ao mesmo tempo fortalecer a presença na construção dos relatórios e diretrizes do IPCC.
Do jeito que funciona hoje o Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa, as remoções de carbono pelas práticas agrícolas são contabilizadas no capítulo de “mudança de uso da terra e florestas”. A briga do setor produtivo é para que todo o carbono sequestrado pelo plantio direto, manejo de pastagem e sistemas integrados conte pontos na calculadora da agropecuária.
Por essa mesma ótica, a energia e o transporte despendidos na operação agropecuária também seriam contabilizados dentro do setor, e não no capítulo energia. “Isso está em discussão, e não é uma coisa simples, porque precisa ter um alinhamento internacional para que haja comparabilidade entre os países. É necessária uma mudança conceitual no inventário”, sublinha Berndt.
Padrão Boi China elevou a régua
Mesmo que as métricas ainda não reconheçam devidamente os atributos sustentáveis da pecuária brasileira, o movimento em direção a um boi de baixo carbono é irreversível. O padrão Boi China, por exemplo, virou quase uma regra nacional para atender os principais clientes do país, que exigem um animal abatido mais jovem, com carne mais macia.
Para produzir esse bovino precoce, de no máximo 30 meses, é preciso otimizar o uso das pastagens e suplementos alimentares, utilizar animais de genética mais avançada, além de zelar pela sanidade e bem-estar das criações.
O que ainda falta na equação é acelerar o ritmo de adoção das novas tecnologias. Num primeiro momento, isso impacta nos custos, mas a recompensa viria não só no aumento da sustentabilidade, mas também em lucros. O desafio é entrar no ciclo virtuoso em que um bom pasto proporciona melhor digestibilidade para o gado, que engorda mais rápido, encurta o ciclo de produção, reduz a emissão de metano e ainda fixa carbono no solo. “É uma roda que ainda está com uma inércia, está girando devagar, mas tem aumentado essa adoção de tecnologia”, sublinha Berndt.
Pauta das métricas na COP 30
O pesquisador da Embrapa, que também integra o comitê para elaboração do Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa, espera que as métricas da pecuária tropical sejam parte importante pauta da COP 30, a ser realizada em Belém, no ano que vem. O setor produtivo, como mostrou reportagem da Gazeta do Povo, teme que a contaminação ideológica do debate transforme a COP 30 em uma "COP contra o agronegócio".
“O Brasil vai querer levar essa pauta para a COP e já há a expectativa de bastante resistência. Imagino que nossos negociadores estão se associando com outros produtores, tropicais e subtropicais, como Argentina, Uruguai, Paraguai e talvez a Austrália, para levar essa pauta de forma conjunta. De que o carbono no solo realmente está compensando as emissões da pecuária”, conclui.
Salvaguarda contra memes da "taxa do arroto"
Com tantos diferenciais propícios para uma pecuária de baixo carbono, a taxação do arroto do boi perde sentido na realidade brasileira. Carlos Alberto Tavares Ferreira, da empresa Carbon Zero, de São José dos Pinhais (PR), há dezesseis anos presta consultoria em projetos de sustentabilidade e programas de compensação de emissão de carbono.
Ele é taxativo quanto ao equívoco de se apontar o boi como vilão das emissões: “A gente consegue provar documentalmente que os manejos integrados e o próprio pasto sequestram o carbono no solo". O problema, diz ele, são "ambientalistas dinheiristas focados em ferrar com a agricultura, que estão abraçados com a indústria de hidrocarbonetos, e outras mais perigosas ainda, como a indústria do carvão".
Eduardo Assad, da FGV, sublinha que os europeus não têm opção de baixar emissões de metano por outro caminho, que não seja por aditivos e suplementos à dieta bovina.
"Aqui no Brasil, se a gente não fizer muita besteira, em pouco tempo nós vamos ter o boi que menos emite no mundo. É o boi em cima de pasto recuperado, em cima de sistemas integrados e com vida útil de 24 meses. Esse boi é o mais limpo do mundo. Já tem gente fazendo isso, e não é porque o pecuarista quer, mas porque a China disse que só compra boi do Brasil de até 30 meses e que não venha de desmatamento", sublinha.
Diante da escalada recente de criação de novas taxas e impostos no país, a pecuária brasileira apresenta suas salvaguardas e argumentos para descartar a solução dinamarquesa. Imposto do arroto pode até gerar memes divertidos, mas seria um péssimo negócio do lado de cá dos trópicos.
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