
“Não é gostoso, saboroso ou palatável. É difícil de digerir, mas é necessário”, avisou a chef de cozinha, escritora, ativista e apresentadora Bela Gil, alguns minutos após iniciar sua palestra , que encerrou o Festival Tutano no último domingo (22), no Museu Oscar Niemeyer.
A voz calma e o jeito suave de Bela, figura icônica no cenário gastronômico brasileiro graças a sua abordagem à alimentação saudável, disfarçam bem as ideias quase revolucionárias que ela carrega dentro de si. Durante a palestra, não faltaram críticas à indústria de ultraprocessados, aos hábitos alimentares difundidos pelo agronegócio e às questões econômicas e sociais que tornam a boa alimentação um privilégio para poucos no Brasil. “É um genocídio silencioso e silenciado”, disparou ela, ao lamentar os 54% de brasileiros que vivem em situação de insegurança alimentar.
A desvalorização do trabalho doméstico, tema de seu sexto e mais recente livro, “Quem Vai Fazer Essa Comida?: Mulheres, Trabalho Doméstico e Alimentação Saudável”, também foi pauta da conversa, em que Bela apresentou ainda cinco medidas para tornar a alimentação saudável – a que faz bem ao corpo, ao meio ambiente e ao produtor rural – algo acessível a todas as pessoas.
Em entrevista exclusiva ao Bom Gourmet, concedida dez minutos antes de subir ao palco do Auditório Poty Lazzarotto, Bela Gil falou mais sobre os temas abordados em suas palestras e sobre os frutos de seus mais de dez anos de trabalho em defesa do acesso irrestrito a uma comida de qualidade.
Confira!
Você hoje vai falar sobre democratização da alimentação saudável. Só aí já são dois enormes desafios: educar sobre alimentação saudável e fazer com que ela chegue a todas as pessoas. Quais são suas estratégias?
Você colocou bem, a primeira ferramenta é o conhecimento. As pessoas precisam ter acesso à informação, àquilo que a gente entende como uma alimentação mais saudável. Primeiro, para tomar uma decisão de escolher o que comer, a gente precisa ter conhecimento, saber é um direito. Depois, eliminando a pobreza, com acesso aos próprios alimentos - conseguir achar um alimento saudável para comprar -, ter tempo para cozinhar. Todas essas questões fazem o elo entre o saber e o fazer, porque não basta só ter o conhecimento e não ter acesso aos alimentos. E não basta ter acesso aos alimentos sem ter o conhecimento necessário para poder escolher. São muitas coisas, mas acho que as ferramentas são essas, começando pelo conhecimento, pelo saber, para que a gente consiga caminhar até fazer com que o alimento chegue no nosso prato.
Qual é o papel que o ato de fazer a sua própria comida tem na educação para uma alimentação saudável?
Eu acho que quando a gente conhece um processo, por exemplo, a gente sabe qual é a melhor forma de conseguir se alimentar. O cozinhar nos traz uma alfabetização, no sentido de que a gente entende o que é um bom alimento, o que é um prato nutritivo. Quando a gente sabe o que fazer, conhece os ingredientes que vão naquela receita, o modo de preparo, a gente também dá mais valor a esse alimento, a essa refeição. Então, eu acho que o cozinhar tem um papel muito emancipatório na nossa vida, na nossa sociedade. Saber cozinhar o próprio alimento é o primeiro passo para um caminho de mais independência, principalmente da indústria, da indústria alimentícia e da indústria farmacêutica. Acho que é um bom caminho para a nossa emancipação.
E como você analisa a importância da agricultura familiar nesse processo?
Bom, a agricultura familiar é fundamental, porque a maior parte dos alimentos que chegam à nossa mesa vêm da agricultura familiar, desses pequenos produtores, dos campesinos. Então, a gente precisa cada vez mais valorizar e reconhecer o trabalho dessas pessoas, e incentivar, fazer com que eles não saiam do campo, não desistam. E aprimorar muito o conhecimento deles e a ferramenta de trabalho deles no campo. Não só o consumidor tem o papel de ir atrás de produtos mais locais, de conhecer os produtores - isso para quem pode, obviamente, para quem tem essa oportunidade de escolha -, mas principalmente o Estado, o governo tem um papel fundamental de incentivar a produção desses pequenos produtores com compras públicas, ajudando na distribuição, dando acesso e fazendo com que esse alimento que eles plantam realmente chegue na mesa dos brasileiros.
Na sua palestra, você também fala sobre desperdício de alimentos. O Brasil é um dos países que mais desperdiça alimentos no mundo [10 ° lugar no ranking de desperdício, segundo dados da ONU]. Como você aborda essa questão?
Acho que o desperdício é um efeito colateral do nosso sistema alimentar. A forma como a gente produz, como a gente distribui, consome e descarta os alimentos faz com que a gente tenha um grande desperdício. Mas é, principalmente, um fator econômico. Muitas vezes, a gente vê um caminhão de tomate, de batata, sendo jogado fora, porque não vale a pena o agricultor carregar esse alimento até um centro de distribuição, porque na hora da colheita, o preço da batata caiu, o preço do tomate caiu, então tem um fator econômico muito forte, é uma cadeia, uma teia muito entrelaçada, que a gente precisa observar. Então, não basta só a gente falar sobre usar o alimento de uma maneira integral, porque essa é uma questão paliativa. A gente precisa fazer com que o alimento não seja desperdiçado, principalmente no campo, porque é ali que acontece a maior perda, quase um terço do que a gente produz é desperdiçado. Então, precisamos melhorar muito nesse lugar. E claro que, como consumidor, a gente tem uma responsabilidade também grande de não desperdiçar e uma das maneiras que a gente pode trabalhar para evitar o desperdício é, por exemplo, tendo uma composteira em casa. Acho uma ótima saída, porque a casca da banana, da melancia e a semente da abóbora viram adubo para a gente alimentar a terra e produzir mais comida. É uma forma de reciclar o alimento. Então, acho que essa também é uma boa saída para o consumidor, que se sente completamente de mãos atadas, sem conseguir resolver o problema maior, que é sistêmico.
Ao longo desses anos que você vem falando sobre esses temas, já consegue perceber alguma mudança de comportamento ou uma abertura maior para se discutir sobre alimentação saudável e reciclagem de alimentos? Você acha que já conseguiu plantar uma sementinha nesse sentido?
Eu acho que sim, eu acho que está mudando, já mudou bastante. Faz mais de dez anos que eu falo sobre isso. Acho que dez anos atrás o que eu falava era visto com outros ouvidos, a aceitação era muito menor, digamos assim. As pessoas achavam que eu estava falando coisas de outro mundo, ou coisas muito utópicas, ou muito inacessíveis e que agora a gente vê que estão se tornando prioridades. Inclusive, não é só uma prioridade das pessoas, de terem mais conhecimento para poderem fazer melhores escolhas, mas até mesmo do papel do governo, que entende que não basta só ter comida na mesa do povo, mas uma comida de qualidade, porque a comida ruim está matando do mesmo jeito. Eu vejo uma mudança muito significativa no comportamento e nas escolhas das pessoas que já tiveram esse acesso à informação.
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