Pessoas
Ciclista, padeiro e professor
Mesmo depois de viajar quase mil quilômetros de bicicleta, as pernas de Bernard Lamarque não param. O francês agitado anda de um cômodo a outro na Bicicletaria Cultural, no centro de Curitiba, com um saco de cinco quilos de farinha nas mãos. Despeja-o em oito montes iguais em uma mesa de fórmica, contando em francês: un, deux, trois. Tem farinha nos óculos de grau e em uma mecha do cabelo e manchas esbranquiçadas no jeans e nos mocassins, mas não se incomoda. “O padeiro trabalha com a farinha e a farinha não é suja”, repete, com seu sotaque carregado, durante a aula de panificação francesa que ministrou na tarde de sexta-feira (4), enquanto seu país era desclassificado do campeonato mundial de futebol. Alguns minutos antes, Bernard jogava punhados de farinha no ar para a foto desta reportagem e resumiu seu sentimento em meio a uma risada e um gesto largo com as mãos, que fecharam sua boca logo depois: “A mim não me importa a Copa, torcida não falta”.
Bernard chegou ao Brasil pelo Rio de Janeiro, com sua bicicleta de carga dinamarquesa embalada em uma caixa de papelão. Não poupou mímicas para demonstrar a reação na alfândega e as dimensões do pacote: “Ooh la la! Un grand carton, o que será? Une geladeira?”. O pacote passou e ele iniciou sua primeira viagem sozinho de bicicleta; em outros anos, viajou com a magrela pela Tailândia, Índia e outros destinos, mas sempre em grupo. Pedalou do Rio a outras cidades no caminho, até parar em Curitiba, em 3 de junho. O tempo que ficaria na cidade não era um plano. Nem dar aulas. Acabou ministrando o primeiro minicurso há duas semanas, para um grupo de crianças. Depois, uma série de oficinas particulares foram marcadas, o que garante que as pernas de Bernard continuem inquietas pela capital. Outras oportunidades surgiram: “Estou fazendo consultoria para melhorrarr um croissant de uma padaria, croissant é muito francês. Se diz ‘melhorrarr’ em português? Sí? Melhorrarr?”, pergunta, sovando seu espanhol até transformá-lo em português. Nos dias 12 e 17 terão novas oficinas na Bicicletaria Cultural (as inscrições estão abertas).
Dos sete alunos, duas eram crianças, três pessoas que pararam ali por acaso e outras duas (contando esta repórter) que gostariam de aprender a fazer pão da forma correta por módicos R$ 15. Para a plateia, Bernard abriu um pote de plástico e, solene, anunciou: “La vie! A origem de tudo!”. Era o levain, que ele fez com uva orgânica esmagada, farinha integral de trigo, água e um punhado de centeio e deixou quinze dias fermentando para ter o suficiente de fungos e bactérias. Alunos a postos, solicita: “Faz um buraco”. Buraco feito, a aula começa. “Uma receita de pão não serve para nada. Um livro de pão não serve para nada. É a proporção de farinha, água e sal que importa”, ensina. “Um quilo de farinha, 20 gramas de sal e fermento. E muita água. O pão francês tem muito mais água que farinha. Nós, padeiros, vendemos água e não farinha”, emenda, bem-humorado.
Do bolso direito da calça tira vários elásticos de dinheiro amarrados e faz cada um puxar uma ponta. Esta é a sua demonstração da rede de glúten que temos que formar ao puxar um dos lados da massa para dobrá-la ao meio até formar um véu: um pedaço de massa bem esticado e tão translúcido que dá para ver através dele. A ideia é alternar entre dobrá-la na direção horizontal e na vertical. Bernard faz tudo parecer muito simples com suas mãos enfarinhadas. “Sovar é a operação que significa fazer nós”, recita. Passa de aluno em aluno pedindo que parem o que estão fazendo e em quatro “dobradas”, Bernard deixa a massa lisa como a pele de um bebê — e sem grudar em suas mãos. “Tocar sem tocar”, segreda, arremedando o mestre Yoda, personagem da saga Star Wars.
A sequência de sete pessoas puxando meio quilo de massa até a altura da cabeça e soltando-a na mesa para dobrá-la resulta em uma sessão de espancamento da mesa. A força é tanta que o móvel pula e se desloca ora para a esquerda, ora para a direita. “Só mais uma hora de la punición e nosso pão estará pronto”. Sovamos por mais meia hora, enquanto ele prepara uma brioche, algo que “o boulanger prepara uma vez na vida, para conseguir o diploma”, brinca. Ele prepara, em média, duas brioches por semana em Curitiba, para a alegria do pessoal da Bicicletaria Cultural. E não se importa. O acaso o levou até ali, onde lhe oferecem casa e comida. Sua retribuição é ensinar o que sabe e arrecadar a contribuição para a Bicicletaria. Esta é também sua explicação para a decisão de se tornar padeiro nos anos 1990. O acaso também é responsável por mantê-lo na cidade por mais de um mês. “Cheguei às 3 da tarde em Curitiba e estava na Avenida Paraná. Vejo outra pessoa com uma bicicleta de viagem. Nos reconhecemos [ele levanta o braço para mostrar como se cumprimentaram]: ‘Hola!’, ‘Olá!’ e perguntou onde eu estava indo. Eu disse ‘não sei’. Ele disse: ‘venha comigo’. C’est tout”.