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Nascida em 1970, filha de uma mãe feminista e um pai socialista, a jornalista norueguesa Asne Seierstad não poderia, nem quis livrar-se das opiniões liberais que marcaram sua formação. Ao ver como as afegãs eram tratadas como cidadãs de segunda classe, Seierstad voltou sua pena para o homem que a acolheu em Cabul, para escrever um livro sobre uma família afegã, após a queda do regime Taleban. Foi acusada por ele de traidora, por retratá-lo como um "tirano", e de etnocêntrica, por alguns críticos, pelo viés ocidental com que observou os costumes afegãos.

"Eu não tento afirmar que meu ponto de vista é melhor ou mais justo. Mas acredito que é importante escrever sobre o sofrimento das pessoas. E acredito em direitos humanos universais. No Afeganistão, estes direitos são violados diariamente. Isto é tomar partido?", indaga a jornalista.

A resposta para pergunta acima pode estar no relato, com tons literários, dos três meses em que Seierstad conviveu com a família afegã. O Livreiro de Cabul (Record, 320 págs.; R$ 45,90), best seller já vendido para mais de 30 países, chega ao Brasil com chances de se tornar um novo O Caçador de Pipas, romance com tintas autobiográficas de Khaled Hosseini, que também tem o Afeganistão como pano de fundo.

Livro-documentário

O livreiro do título é Sultan Khan (nome fictício), homem a quem Seierstad conheceu após meses cobrindo a guerra contra os talebans. A jornalista viu nele – um homem aparentemente liberal, que resistira aos comunistas e ao Taleban para manter sua livraria aberta – a oportunidade de revelar outra faceta do país, diferente da dos comandantes, soldados e vítimas diretas da guerra a quem já havia entrevistado.

"Uma família típica afegã seria analfabeta, estaria no campo, lutando para sobreviver, uma vida que não mudaria muito com a queda do regime. Na família do livreiro, os membros eram mais abertos, poderiam refletir sobre as mudanças no país. E, ao mesmo tempo, quando se trata de tradições, regras e costumes, eles eram típicos afegãos, embora tivessem mais dinheiro do que a maioria da população", diz.

Na casa do livreiro, Seierstad conviveu com sua esposa, cinco filhos e outros parentes, com quem dividia quatro cômodos.

Chegou lá com a "roupa do corpo" e, ao mesmo tempo em que sofreu com a burca ("aperta e dá dor de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada"), tirou proveito da indumentária para circular incógnita em ônibus, mercados e até um banho público de Cabul.

Sem falar o dialeto persa da família, a jornalista pôde, por sorte, falar em inglês, com alguns membros. Anotou relatos sobre suas infâncias, casamentos e memórias da guerra. Jamais se intrometeu em conflitos, mesmo quando testemunhou o filho adolescente de Khan ser obrigado a trabalhar 12 horas por dia, sem poder estudar. Ou quando seu anfitrião decidiu "exilar" a primeira mulher no Paquistão, para casar-se com uma menina de 16 anos.

"De que adiantaria tentar mudar uma família afegã? Preferi ficar com minha boca calada e escrever o que ouvia e via.

Mas é claro que algumas vezes fiquei com vontade de gritar que algo era injusto. Mas não fiz isso, escrevi o livro ao invés."

A jornalista não só escreveu o livro, como partiu para uma ação mais concreta para ajudar os afegãos: doou US$ 200 mil (cerca de R$ 450 mil), parte dos ganhos com seu livro, para construir uma escola para 600 garotas nos arredores de Cabul.

Khan, cujo verdadeiro nome é Shah Mohammad Rais, ameaçou processar Seierstad, mas trocou o tribunal por um contrato com um editor norueguês, para um livro com o título Eu Sou o Livreiro de Cabul.

"Ele que escreva o livro e os leitores vão julgar. É melhor do que tentar limitar a minha liberdade de expressão e mais democrático".

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