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Salman Rushdie é um grande escritor que também atua como “celebridade” | Divulgação
Salman Rushdie é um grande escritor que também atua como “celebridade”| Foto: Divulgação

•••"Ia morrer sem contar sua história. Achava essa idéia intolerável e assim ela se recusava a deixá-lo, engatinhava para dentro e para fora de seus ouvidos, deslizava pelos cantos de seus olhos e grudava-se ao céu da boca e ao tecido mole debaixo da língua. Todos os homens tinham de ouvir suas histórias ser contadas. Ele era um homem, mas se morresse sem contar a história seria menos do que isso, uma barata albina, um piolho. A masmorra não entendia a idéia de uma história. A masmorra era estática, eterna, negra e uma história precisava de movimento, de tempo, de luz."•••

Um ocidental – loiro, excêntrico e vestido com um casaco de losangos de couro multicolorido – parte numa viagem perigosa com um único objetivo: contar uma história ao imperador mais poderoso do Oriente, Akbar, o Grande. A partir desse argumento, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie liga Ocidente e Oriente, intercala narradores em tempos e situações diferentes e tece uma espécie de "Mil e Uma Noites" em que o personagem Mogor dell’Amore, como Sherazade, sobrevive graças à sua habilidade em contar uma história.

No decorrer do livro, a imaginação poderosa de Rushdie recheia a narrativa com prostitutas misteriosas, gigantes albinos, mulheres que dominam o mundo pela beleza, perfumes que permitem seduzir reis e imperadores, esposas imaginárias e exércitos invencíveis. E por baixo de tudo, a dar fôlego e amparo a cada capítulo, correm a ironia fina e as reflexões dos personagens – as mais constantes sendo as do imperador Akbar.

"Ele queria investigar, por exemplo, por que alguém se apegava a uma religião não por ela ser verdadeira, mas por ser a fé de seus pais. Fé não era fé, mas simples hábito familiar? Talvez não existisse nenhuma religião verdadeira, apenas esse eterno passar adiante. E o equívoco podia ser passado adiante com a mesma facilidade que a virtude."

Entre os pensamentos dos personagens, uma idéia se forma de maneira discreta, elegante e recorrente. A de que: "Essa pode ser a maldição da raça humana. Não que sejamos tão diferentes uns dos outros, mas que sejamos tão parecidos". Ou, em outra passagem, nas palavras de Antonio Argalia – florentino que, órfão, saiu para conquistar o Oriente: "(...) Florença estava em toda parte e toda parte estava em Florença. Em toda parte do mundo havia príncipes onipotentes, Medicis que conduziam as coisas porque sempre haviam conduzido as coisas e que podiam fazer a verdade ser o que queriam meramente decretando que assim fosse".

Mas, reflexões à parte, a história que Mogor dell’Amore conta ao imperador é, por si só, perigosa e escorregadia. Começa em Florença, nos idos do século 16, com três amigos jovens saindo em busca de uma raiz de mandrágora, e se estende até o novo mundo, a América recém-descoberta, para só então ir parar nos ouvidos de Akbar.

Enquanto conta a história, Mogor coloca sua vida à mercê das vontades do soberano, cujo humor em relação aos relatos oscila violentamente. Ora embevecido com o forasteiro, em outros momentos Akbar se auto-impõe reservas e desconfianças e se coloca em guarda: "Quando se puxa a espada da língua, (...) ela fere mais fundo que a lâmina mais afiada", filosofa o imperador. O que não deixa de ser uma frase interessante vinda da cabeça de um autor que teve uma fatwa (condenação à morte) lançada contra si por um livro considerado ofensivo, Os Versos Satânicos.

Vale lembrar que foi por conta da língua-espada apontada ao Islã que o autor sofreu um período de perseguição e sofrimento. O que também trouxe uma inegável projeção internacional. O jornal americano The New York Times chegou a declarar, quando do lançamento de A Feiticeira de Florença nos Estados Unidos: "Nos últimos anos, a celebridade caricaturada às vezes ameaçou eclipsar o escritor".

Mas a ameaça não se concretizou. É fato que Rushdie sabe mobilizar a mídia como poucos. Mas isso não se reflete necessariamente em sua produção literária. A celebridade Salman Rushdie atua em seu território: fazendo pontas em filmes de Hollywood (como em O Diário de Bridget Jones); cochichando ao ouvido de beldades (como no clipe de estréia da atriz e agora cantora Scarlett Johannson); recebendo condecorações da rainha da Inglaterra (e, com isso, enfurecendo Ayman al Zawahiri – segundo no comando da Al-Qaeda); medindo forças com outros escritores (recentemente respondeu a uma crítica de John Updike, mandando que ele fosse escrever suas historinhas provincianas).

Por outro lado, o escritor Salman Rushdie também está exatamente onde deveria estar: nos livros. E A Feiticeira de Florença é a prova de que, nos livros, o escritor é quem reina absoluto.

Serviço

A Feiticeira de Florença, de Salman Rushdie. Companhia das Letras, 408 págs., R$ 54.

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