"Ia morrer sem contar sua história. Achava essa idéia intolerável e assim ela se recusava a deixá-lo, engatinhava para dentro e para fora de seus ouvidos, deslizava pelos cantos de seus olhos e grudava-se ao céu da boca e ao tecido mole debaixo da língua. Todos os homens tinham de ouvir suas histórias ser contadas. Ele era um homem, mas se morresse sem contar a história seria menos do que isso, uma barata albina, um piolho. A masmorra não entendia a idéia de uma história. A masmorra era estática, eterna, negra e uma história precisava de movimento, de tempo, de luz."
Um ocidental loiro, excêntrico e vestido com um casaco de losangos de couro multicolorido parte numa viagem perigosa com um único objetivo: contar uma história ao imperador mais poderoso do Oriente, Akbar, o Grande. A partir desse argumento, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie liga Ocidente e Oriente, intercala narradores em tempos e situações diferentes e tece uma espécie de "Mil e Uma Noites" em que o personagem Mogor dellAmore, como Sherazade, sobrevive graças à sua habilidade em contar uma história.
No decorrer do livro, a imaginação poderosa de Rushdie recheia a narrativa com prostitutas misteriosas, gigantes albinos, mulheres que dominam o mundo pela beleza, perfumes que permitem seduzir reis e imperadores, esposas imaginárias e exércitos invencíveis. E por baixo de tudo, a dar fôlego e amparo a cada capítulo, correm a ironia fina e as reflexões dos personagens as mais constantes sendo as do imperador Akbar.
"Ele queria investigar, por exemplo, por que alguém se apegava a uma religião não por ela ser verdadeira, mas por ser a fé de seus pais. Fé não era fé, mas simples hábito familiar? Talvez não existisse nenhuma religião verdadeira, apenas esse eterno passar adiante. E o equívoco podia ser passado adiante com a mesma facilidade que a virtude."
Entre os pensamentos dos personagens, uma idéia se forma de maneira discreta, elegante e recorrente. A de que: "Essa pode ser a maldição da raça humana. Não que sejamos tão diferentes uns dos outros, mas que sejamos tão parecidos". Ou, em outra passagem, nas palavras de Antonio Argalia florentino que, órfão, saiu para conquistar o Oriente: "(...) Florença estava em toda parte e toda parte estava em Florença. Em toda parte do mundo havia príncipes onipotentes, Medicis que conduziam as coisas porque sempre haviam conduzido as coisas e que podiam fazer a verdade ser o que queriam meramente decretando que assim fosse".
Mas, reflexões à parte, a história que Mogor dellAmore conta ao imperador é, por si só, perigosa e escorregadia. Começa em Florença, nos idos do século 16, com três amigos jovens saindo em busca de uma raiz de mandrágora, e se estende até o novo mundo, a América recém-descoberta, para só então ir parar nos ouvidos de Akbar.
Enquanto conta a história, Mogor coloca sua vida à mercê das vontades do soberano, cujo humor em relação aos relatos oscila violentamente. Ora embevecido com o forasteiro, em outros momentos Akbar se auto-impõe reservas e desconfianças e se coloca em guarda: "Quando se puxa a espada da língua, (...) ela fere mais fundo que a lâmina mais afiada", filosofa o imperador. O que não deixa de ser uma frase interessante vinda da cabeça de um autor que teve uma fatwa (condenação à morte) lançada contra si por um livro considerado ofensivo, Os Versos Satânicos.
Vale lembrar que foi por conta da língua-espada apontada ao Islã que o autor sofreu um período de perseguição e sofrimento. O que também trouxe uma inegável projeção internacional. O jornal americano The New York Times chegou a declarar, quando do lançamento de A Feiticeira de Florença nos Estados Unidos: "Nos últimos anos, a celebridade caricaturada às vezes ameaçou eclipsar o escritor".
Mas a ameaça não se concretizou. É fato que Rushdie sabe mobilizar a mídia como poucos. Mas isso não se reflete necessariamente em sua produção literária. A celebridade Salman Rushdie atua em seu território: fazendo pontas em filmes de Hollywood (como em O Diário de Bridget Jones); cochichando ao ouvido de beldades (como no clipe de estréia da atriz e agora cantora Scarlett Johannson); recebendo condecorações da rainha da Inglaterra (e, com isso, enfurecendo Ayman al Zawahiri segundo no comando da Al-Qaeda); medindo forças com outros escritores (recentemente respondeu a uma crítica de John Updike, mandando que ele fosse escrever suas historinhas provincianas).
Por outro lado, o escritor Salman Rushdie também está exatamente onde deveria estar: nos livros. E A Feiticeira de Florença é a prova de que, nos livros, o escritor é quem reina absoluto.
Serviço
A Feiticeira de Florença, de Salman Rushdie. Companhia das Letras, 408 págs., R$ 54.
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