Mukherjee investiga o histórico do câncer e os novos estudos| Foto: Deborah Feingold/Divulgação

Se existe uma doença no mundo circundada por tabus e acompanhada por estigmas, essa doença é o câncer. Ele assusta mais do que todas as outras enfermidades, principalmente por sua aleatoriedade e pela ideia de sentença de morte lentamente decretada – como se toda vida não viesse igualmente com uma. A distância com que se fala sobre a neoplasia por vezes termina por amplificar a aura de mistério e interpretações equivocadas sobre sua origem e possibilidades de cura – de onde surgem terapias e ervas milagrosas duvidosas tão explicitamente sugeridas. Procurando jogar uma luz na história da doença e da luta da humanidade contra ela, o médico indiano radicado nos Estados Unidos Siddhartha Mukherjee escreveu O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer, obra-prima merecedora do Pulitzer 2011 na categoria não-ficção.

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Mukherjee, que é de Nova Délhi, fez residência no Massachussetts General Hospital, em Boston, onde se especializou em oncologia. A partir da leucemia aguda de Carla, paciente que ficou sob seus cuidados e que lhe marcou particularmente, além de dezenas de outros casos com os quais conviveu nos dez meses de residência, o médico decidiu investigar o histórico da enfermidade registrada por médicos da antiguidade e principalmente dos séculos 19 e 20, para entender a forma dessa doença que, na verdade, são várias que se mesclam sob a mesma denominação.

Diversos personagens passam pela "biografia do câncer", como o autor quis chamar. Entre elas, o antigo médico grego Galeno, que atribuiu a existência do câncer a uma certa bile negra à qual se atribuíam outras condições, como a depressão; o cirurgião americano William Halsted (1852-1922), inventor do conceito de cirurgia radical, que ensinou seus discípulos a amputarem cada vez partes maiores do corpo humano com câncer para curar a doença por meio da mutilação; o grego Geórgios Papanicolau (1883-1962), descobridor do exame que leva seu nome e dá início à tardia prevenção ao câncer; e Sidney Farber (1903-1973), pediatra e patologista americano que pela primeira vez descobriu o uso de drogas para reduzir a contagem de leucócitos em pacientes com leucemia, e empreendeu junto com a socialite Mary Lasker (1900-1994) – outra personagem recorrente do livro – uma das maiores campanhas de conscientização da importância de se pesquisar o câncer.

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Este é outro ponto importante de O Imperador de Todos os Males: o câncer como força política. Por meio de lobbys e arrecadações de fundo, Mary e Farber conseguiram criar o National Cancer Institute (NCI), usando como forte argumento a determinação dos cientistas do Projeto Manhattan que, quando instruídos, capacitados e direcionados a um mesmo e único objetivo, são capazes de criar algo até então inconcebível, como a bomba atômica ou a cura do câncer (a guerra, aliás, toma parte em outros episódios do avanço da medicina, como quando os efeitos do Gás Mostarda, usado na Primeira Guerra Mundial, demonstraram o caminho dos agentes químicos para reverter os efeitos da leucemia). Criar a consciência de que o câncer é uma doença que vitimará boa parte da população, e a consequente importância nas pesquisas – algo lógico e compreensível para a mentalidade de hoje – se mostrou uma verdadeira luta, envolvendo campanhas midiáticas e influência no congresso americano para aprovar leis que endossassem os cientistas e intercedessem a favor da saúde da população quando a indústria tabagista reagiu aos estudos que comprovavam uma relação entre o hábito de fumar e diversos tipos de câncer.

A grande lição que reside na obra de Siddhartha Mukherjee é, entretanto, a de que a marcha contra o câncer é lenta, porém brilhante. Descobertas aparentemente simples e sem muita importância se tornam, nas mãos de um cientista visionário, um novo ponto que demarca o grau de conhecimento da humanidade sobre a doença. Cada novo passo guarda em si a promessa de revolucionar a medicina moderna, e mesmo ante o dilúvio de decepções, frustrações e mortes de pacientes, o ímpeto curioso e inquieto dos personagens – que quase involuntariamente os envolve em uma certa aura heroica – reúne disposição para dar mais um passo em direção a uma cura utópica e, ainda assim, cada vez mais possível.

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Serviço: O Imperador de Todos os Males- Siddhartha Mukherjee. Tradução de Berilo Vargas. Companhia das Letras, 648 págs., R$ 54. Ciência.