Charles: fã de Beatles, compôs oito músicas, lançou novo disco e voltou aos palcos| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

Um bigode postiço teima em não acontecer. Mesmo com a precisão das mãos da mãe, o filho, sentado, se agita e treme – de alegria –, querendo contar suas duas vidas em poucos minutos. É que Charles Britto tem um compromisso. Logo mais, na noite daquela quarta-feira, estaria no palco do Empório São Fran­cisco tocando blues e rock, rindo, se divertindo. Vivendo de novo.

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O bigode feito a lápis era o complemento da "fantasia" daquele Britto, prestes a virar Chaplin para comemorar seu aniversário: naquele dia, já estava de camisa branca engomada, calças pretas folgadas e sapatos negros lustrosos. No rosto, alegria e uma camada de maquiagem, branca e pastosa, que chegava perto dos cabelos longos e esparramados – sinal de rebeldia, juventude. "Venci mais uma vez", diz Charles, em seus tempos modernos.

Porque tudo era diferente há nove anos. Voltando de um show com sua ex-banda, Charles madrugou. Bebeu. Beberam todos os quatro. Teve a chance de ficar em casa depois da noitada, mas quis sair de novo – aos 20 anos, ir para Santa Felicidade com amigos às 6 horas da manhã parece uma boa ideia. Foi. O carro, veloz, encontrou um ônibus, capotou. Tudo parou. Ironia da vida, Charles, sentado no banco de trás, era o único que usava cinto de segurança.

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Traumatismo craniano, le­­sões nos dois hemisférios do cé­­rebro e uma conversa sobre doação de órgãos foi o que Graça Bri­­to, mãe desesperada, ouviu quando chegou ao hospital Ca­­ju­­ru. Os médicos também di­­ziam que o cérebro estava encharcado de sangue. Então era questão de horas. Só algum tempo para que os coágulos chegassem ao coração. Charles teria uma parada cardíaca: fim. Não.

"Meu filho, não tenho religião, tenho fé", brada a baiana. As veias saltam na testa, sua energia é quase concreta. Já no dia seguinte, começou a segunda vida de Charles Britto.

Mas primeiro veio o laudo, impiedoso: "incapaz definitivo. É equivalente a paralisia. Neces­­sitará de cuidados permanentes de enfermagem e fisioterapia. Compatível com invalidez para o trabalho remunerado". Que na­­da. Graça, escondida, colocava ar­­nica diluída na sonda do filho – "uma erva que na minha terra eles usam para trauma". Passados alguns vidros e dias, Charles começa a desinchar.

Graça desafiou laudos, médicos, enfermeiros. Hospitais inteiros. Ao ver que uma bactéria o atacava, resolveu mudar. De­­cidiu ir para o Sarah Kubi­tschek, em Brasília, para ouvir outras opiniões que, esperava ela, fossem diferentes de todas as outras. Depois de conseguir um médico que fizesse acupuntura em Charles às escondidas – "era minha intuição", justifica –, Gra­­ça passou um trote na secretária e conversou diretamente com o diretor-chefe do hospital, Aloisio Campos da Paz. Con­­seguiu uma avaliação, uma UTI aérea – "meu filho, quem tem avião nesse país? A aeronáutica!" – e lá foi Charles para a consulta. Ele estava há quase dois meses em coma e respirando por aparelhos. Pesava 45 quilos, definhava.

Um mês de exames, e outro diagnóstico conclusivo: "Vida vegetativa, Charles é tetraplégico completo".

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A essa altura, as palavras gastrostomia, traqueostomia, espasticidade e sonda nasogástrica já estavam incorporados ao vocabulário da baiana dona de ca­­sa. Eram tão comuns que Graça resolveu estudar o que lia – entender melhor o seu filho.

"Ia lá no computador da Rua 24 horas, que é grátis, pesquisar sobre plasticidade neural. Achei um livro sobre neuróbica, tinha 368 páginas." Graça emprestava os livros e, sem poder comprá-los, tirava xerox. Depois os devolvia. Eram passados quatro meses do acidente e Charles já estava em casa, acompanhado do pai, durante o dia, e das peripécias da mãe, à noite. Graça estimulava os sentidos de Charles colocando gravações em seu ouvido, oferecendo cheiros a seu nariz e massinhas de modelar a suas mãos. Até que, certa noite, ouviu um "amooooocê". Logo depois, Charles levantava a mão, ainda rija. "Amoooooocê", repetiu. "Aí foi uma loucura".

Charles e Graça começavam a se divertir. Faziam fisioterapia um com o corpo do outro. Improvisando, Graça prendia o braço do filho, que teimava em não mudar de posição, em uma cama de segunda mão doada pelo Hospital do Exército.

Depois de outras reavaliações em Brasília e no Rio de Janeiro, sempre surpreendentes, um método de comunicação foi inventado. Existia um cartaz de papel cheio de letras. Charles apontava uma por uma, dizia o que queria e saia aos poucos de seu escafandro.

Desafiou mais médicos, que disseram que Charles chegara ao limite. Mas não. "Somos grandes, ele pode, ele consegue, ele é danado", brinca Graça.

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Hoje Charles, ainda em processo de recuperação, já apronta das suas de novo. Anda, toca, cai com a cara no chão, porque teima em andar sozinho. Diz que só tem 8 anos e por "isso é assim". Por isso agora imita aquele outro Charles de anos atrás: fecha as mãos, entorta a boca. Mas sorri. "O bom-humor pode predominar em tudo", diz.

Com os amigos Hermann (guitarra e voz), Leandro (voz e gaita), Kako (baixo e voz) e André (voz e bateria), Charles ("azucrinação"), compôs oito músicas que estão no disco Um Dubão, de Charles & Seus Alimalles, sua nova banda. (www.myspace.com/charlesbritto).

"Ele vinha todo dia com uma música nova. Tivemos que limar algumas", diz um dos amigos. Rindo, no dia de seu aniversário e antes de reestrear nos palcos, Charles não pensa nos cinco meses em que esteve em coma. Ele poderia até estar "ausente da vida", mas nunca esteve "longe da música."