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Mia Couto, menos poético e mais politizado, assume o papel de porta-voz da África | Bel Pedrosa/Divulgação
Mia Couto, menos poético e mais politizado, assume o papel de porta-voz da África| Foto: Bel Pedrosa/Divulgação

Trecho

"Às vezes pergunto-me: de onde vem a dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História."

Trecho de "Os Sete Sapatos Sujos", que integra E Se Obama Fosse Africano?, de Mia Couto.

O escritor moçambicano Mia Couto conta, na coletânea de textos E Se Obama Fosse Africano?, como foi incumbido, na década de 1980, de compor, junto com outros artistas, um novo hino nacional e um novo hino para o Partido Frelimo, grupo político marxista-leninista que governou seu país natal a partir da independência conquistada de Portugal, em 1975. Com o mesmo senso de dever cívico e honradez com que Couto tomou a tarefa de produzir a expressão artística que representaria sua pátria, o escritor representa intelectualmente neste livro não apenas o povo de Moçambique, mas por vezes todo o continente africano.

Não é por acaso nem à revelia da comunidade intelectual que o autor assume esse papel: dotado de um estilo literário peculiar, com uma prosa poética embebida nos neologismos de Guimarães Rosa, o escritor e biólogo conquistou prêmios literários suficientes para ser um dos mais reconhecidos autores africanos vivos – e talvez o mais representativo da língua portuguesa. Dessa forma, o que vemos em E Se Obama Fosse Africano? é um Mia Couto menos poético e mais politizado, porta-voz de um continente que há mais de um século tenta fazer parte do planeta e cujo maior obstáculo é o preconceito que tem contra si próprio. "Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que como produtores. A ideia de que a África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos", declara em seu discurso "Os Sete Sapatos Sujos", referindo-se a sete costumes que o continente precisa abandonar para crescer.

A desilusão com que o escritor pinta sua África é tocante. Extasiado pela vitória do presidente americano Barack Obama em 2008, Couto publicou o ensaio que dá nome ao livro no jornal moçambicano Savana, onde escreveu os percalços que o estadista símbolo da esperança mundial enfrentaria no continente. Governos rivais que alterariam a Constituição para permanecer mais tempo no poder, agressões físicas e mesmo uma possível elegibilidade negada por uma elite branca e aristocrata, entre outros obstáculos, terminariam por enterrar o Obama africano junto com sua pretensa gana de mudar a realidade. "Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: (...) é lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia".

É espantoso observar como a realidade brasileira não está nada distante da africana, e talvez por isso a leitura de E Se Obama Fosse Africano? faça mais sentido para nós do que gostaríamos. Problemas em comum, como a corrupção, o culto das aparências e a impunidade, entre outros, atrasam duas terras separadas por um Oceano Atlântico.

A proximidade com o Brasil, porém, não é apenas negativa. Em dois dos ensaios, lidos em eventos brasileiros, Mia Couto destrincha sua paixão por Guimarães Rosa e fala do amor e da identificação por parte dos africanos pela literatura de Jorge Amado. "O Brasil – tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade – nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio", declara o escritor sobre a revelação do país que a obra do autor baiano proporcionava. Resta a nós ver nos discursos de Mia Couto e na cultura africana a outra margem do rio.

Serviço:

E Se Obama Fosse Africano?, de Mia Couto. Companhia das Letras, 208 págs., R$35. GGG

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