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Uma cena no documentário Thelonious Monk: Straight, No Chaser (1988), produzido por Clint Eastwood, mostra o pianista-protagonista conversando com a benfeitora Nica de Koenigswarter – nobre britânica fascinada por jazz – e com um senhor baixinho, careca e um pouco acima do peso, chamado Max Gordon.

O filme não dá nenhuma dica e o nome do homem não chega a ser mencionado, mas ele é o proprietário do lugar e, sozinho, renderia um documentário. Parte das histórias que tinha para contar, Max Gordon reuniu em Ao Vivo no Village Vanguard (Tradução de Cid Knipel. Cosac Naify, 232 págs., R$ 45).

Lançado nos EUA em 80 e só agora traduzido no Brasil ("Aleluia!", gritam os fãs do jazz), obra ganha uma edição linda, em capa dura, com fotos de cair o queixo e introdução do crítico Nat Hentoff.

É uma espécie de biografia, mas não de Gordon. A trajetória retratada no livro é do Vanguard, um porão que mais parece um organismo vivo, uma criatura com alma e coração, há 71 anos situada no mesmo 178 da Seventh Avenue South, em Nova Iorque.

Pense no nome de um jazzista dos grandes surgido a partir dos anos 50. Não importa qual, ele, em algum momento da carreira, terá passado pelo Vanguard. Os que não se apresentaram nele, provavelmente, não viveram o suficiente para fazê-lo. Muitos gravaram discos ao vivo no lugar, aproveitando a lendária acústica que rendeu a alcunha de "Carnegie Hall do jazz".

Sonny Rollins, Bill Evans (o recordista em número de discos "at the Vanguard") e John Coltrane tocaram e gravaram lá entre 57 e 61, retornando de tempos em tempos ao longo de vários anos.

Dexter Gordon? Sim.

Dinah Washington? Também.

Betty Carter? Claro.

Charles Mingus? Monk? Gerry Mulligan? Todos.

Miles Davis nunca gravou, mas se apresentou por algumas noites. O capítulo dedicado ao trompetista no livro só não é melhor por ser curto demais. Isso diz muito sobre o temperamento de Max Gordon. Ele poderia reivindicar para si o papel de protagonista da História. Bastava produzir cem páginas sobre a relação com Miles – ou tentar se fazer em cima de qualquer um dos astros que contratou – e esperar pelo reconhecimento que viria em seguida.

No entanto, Gordon sentou e escreveu seis – apenas seis! – páginas sobre as invertidas que levava do trompetista (não dá para dizer que as pessoas se "relacionavam" com Miles).

Ele conta que o músico costumava aparecer no Blue Angel com a namorada do dia, passava a noite bebendo champanhe e, quando recebia a conta, rasgava na cara no garçom, dizendo que passou anos tocando no Vanguard a um preço ridiculamente baixo. O mínimo que Gordon podia fazer era pagar uma bebida para ele.

Desde sua abertura, em plena Depressão, e por mais de duas décadas, a casa abrigava comediantes e números musicais diversos. O jazz tomaria conta do ambiente somente em 55. O relato desse período é o trecho em que o autor parece mais disposto a traçar um livro de memórias – depois dos anos 60, os capítulos se tornam conversas com personalidades que povoavam a noite do bairro Greenwich Village (vem daí a "Vanguarda do Village").

Max Gordon (1903 – 1989) deixou a Lituânia aos dois anos de idade no colo da mãe. Estabelecida em Portland, no estado de Oregon, esperava que o filho se tornasse advogado. Ele chegou a entrar na escola de Direito da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, mas desistiu em seguida e, meio sem querer, embarcou no mundo das casas de espetáculos quando ainda havia a Lei Seca.

Espelunca

O empresário-escritor passou anos batendo a cabeça até montar o Vanguard em 35. Quase uma década depois, em 43, animado pelo desempenho comercial de sua "espelunca", abriu o Blue Angel em sociedade com Herb Jacobi.

A clientela do Blue Angel era chique e as atrações, mais populares. O lugar herdou as características do Vanguard inicial, apresentando comediantes e músicos de vários gêneros. Foi nele que uma tal Barbra Streisand deu início a sua carreira. Caminho semelhante seguiu Harry Belafonte, à época agenciado por Jack Rollins, figura que se tornaria conhecida por descobrir Woody Allen (e mais tarde produziria todos os filmes do cineasta). Allen, aliás, era figura carimbada nos palcos do Vanguard e do Blue Angel, onde começou a ler as piadas que escrevia ao invés de vendê-las para outros comediantes.

Gordon administrava as casas como se movesse peões. A atração que não dava certo em uma, podia funcionar na outra. A viagem lisérgica de Timothy Leary e Dick Alpert jamais caberia no Blue Angel, mas rendeu uma noite agitada no Vanguard.

Batizada de Laboratório de Desenvolvimento Humano, as experiências de Leary com LSD renderam sua expulsão da Universidade de Harvard. Distante da academia, o "guru" deu seqüência ao seu projeto e acabou criando um espetáculo que procurava mostrar ao público o que ele poderia ver e sentir se tomasse a droga. Absurdos como esse ocupavam o Vanguard às segundas-feiras, dia de folga dos músicos.

Foram necessários sete anos para que Gordon escrevesse Ao Vivo no Village Vanguard (em in-glês, Live at the Village Vanguard) e o resultado é de uma simplicidade comovente. A narrativa tem o tom de uma conversa entre amigos. Muitos trechos são mesmo transcrições de diálogos que o autor teve com músicos e profissionais do meio.

Esse formato, somado ao fato de Gordon ter começado o livro no início dos anos 70, explica algumas ausências injustificáveis. A opção por se dedicar aos artistas ainda vivos não chega a ser um critério. Está mais para uma limitação, pois ficaram de fora personagens importantes, entre eles, Evans e Coltrane.

A favor de Gordon está sua honestidade. Ele resolveu escrever o livro para tentar responder as perguntas insistentes de freqüentadores que imaginam haver um segredo miraculoso por trás da longevidade do Village Vanguard. De maneira simples e franca, o homem admite que tudo e todos conspiraram para que seu porão desse certo. No percurso, lança algumas impressões sobre jazz. A música de Charles Mingus é "frenética, ardente e rapsódica", o solo de Sonny Rollins, "grasnante, enlevado".

A edição nacional exibe o bom gosto típico da Cosac Naify, mas sofre com a falta de método de Gordon. Seria perfeito se houvesse mais informações além do texto em si (na forma de notas de rodapé, apêndice ou posfácio), situando os fatos no tempo e relacionando dados biográficos do autor e de algumas personalidades retratadas. Para não dizer que o livro é perfeito.

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