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Miguel Reale (1910-2006), outro pensador que evidenciou nuances tupiniquins | Mônica Zarattini/Agência Estado
Miguel Reale (1910-2006), outro pensador que evidenciou nuances tupiniquins| Foto: Mônica Zarattini/Agência Estado
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Colombiano, natural de Bogotá, Ricardo Vélez Rodríguez migrou para o Brasil em 1979 com a finalidade de realizar doutoramento, e acabou fixando raízes em terras brasileiras. Autor de mais de 20 livros, entre os quais Castilhismo, uma Filosofia da República e Estado, Cultura y Sociedad en la América Latina, Rodríguez elaborou uma série de apontamentos pertinentes sobre os pensadores do Brasil, além de ter esboçado um panorama histórico do assunto.

Quem são os intérpretes do país?

Ao longo da nossa história houve, em cada época, intérpretes do Brasil. No período colonial, temos a obra de Nuno Marques Pereira, intitulada Peregrino da América, que circulou ao longo do século 18. Ele era preocupado com os principais problemas da época para os habitantes deste país: a exploração dos índios pelos portugueses, de um lado, e, de outro, as questões relativas à outra vida. Explico-me: assim como hoje todo mundo se preocupa em ter plano de saúde, no século 18 era essencial ter garantida a salvação da sua alma. Daí a importância da assistência dos sacerdotes à população, notadamente na hora de partir desta para a outra vida. Todo mundo queria garantido o cantinho no céu, tendo pessoas que rezassem por ele na hora da morte e após. As irmandades eram espécies de "planos de saúde para a vida eterna", garantindo aos seus membros enterro cristão pertinho da Igreja matriz, missas e orações frequentes etc.

Cada época tem os seus próprios intérpretes?

Exato. No século 19, temos, no início, pouco antes da Independência, o grande pensador e homem público foi Silvestre Pinheiro Ferreira, que pensou as bases da nacionalidade nas suas Cartas Sobre a Revolução Brasileira, bem como no seu Manual do Cidadão num Governo Representativo. Ambas as obras debruçavam-se sobre o que deveria ser o pacto político da jovem nação que nascia à sombra da Coroa Portuguesa.

Tobias Barreto é outro grande pensador do século 19, não é?

Sim. Já para o final do século 19, temos os Ensaios Filosóficos do grande Tobias Barreto, um liberal republicano que criticava fortemente as instituições imperiais e a sua filosofia eclética. Barreto era um estranho kantiano, que viveu no interior nordestino e que escrevia um jornal em alemão, Brasilianische Zeitung (para cutucar com vara curta a nobreza pesudoparisiense que vivia na capital imitando os salões da Cidade Luz). Ele foi o fundador da mais importante corrente de pensamento do século 19, denominada de Escola do Recife, que deitou os alicerces para a nossa meditação do século 20, nos terrenos da Filosofia, do Direito e da Sociologia. Essa corrente, denominada pelos estudiosos de Culturalismo, tinha como base a meditação de Kant, bem como a crítica ao espiritualismo do século 19, num contexto que valorizava a pesquisa científica da realidade social.

E o século 20?

Destacaria duas figuras importantes: Miguel Reale (1910-2006) e Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Reale, continuador da meditação de Tobias Barreto, com a obra intitulada Experiência e Cultura deu embasamento filosófico à sua meditação jurídica (teoria tridimensional do direito), bem como a uma abordagem ampla do homem, num contexto teórico de base neokantiana, mas aberto, também, à dimensão do historicismo hegeliano, à filosofia dos valores (na trilha de Max Scheler), à problemática da experiência (incorporando a meditação de John Dewey), à questão das filosofias nacionais e à dimensão problemática da Filosofia (seguindo as pegadas de Nicolai Hartmann e Rodolfo Mondolfo). Reale é, segundo estudiosos brasileiros e estrangeiros, a máxima manifestação do Culturalismo, bem como o maior pensador em língua portuguesa do século 20.

Vicente Ferreira da Silva foi, no sentir de Reale, "a maior vocação metafísica do Brasil". Os seus diálogos filosóficos, bem como os seus ensaios são, hoje, referenciais para pensarmos o homem brasileiro no contexto da existência aberta ao mistério do Ser, relativizando as propostas puramente factuais daqueles que, de forma um tanto trêfega, pretendem que o ser humano seja apenas índice de desenvolvimento, ficha de militância política ou de produtividade, lhe negando qualquer outra dimensão. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) tinha como uma das suas fontes para a Filosofia Hermenêutica a obra de Ferreira da Silva, conforme testemunho de um dos seus assistentes na Universidade de Heidelberg, o filósofo colombiano Carlos Bernardo Gutiérrez. Nas primeiras décadas do século 20, surgiram alguns intérpretes específicos no Brasil, não é mesmo?

A linha dos denominados "intérpretes do Brasil" surge na década de 1920. Acompanhando a crise que se instala a nível global com a Primeira Guerra Mundial, a sociologia vai ganhar força renovada com dois pensadores: Oliveira Vianna (Populações Meridionais do Brasil) e Gilberto Freyre (Casa-Grande e Senzala). A pergunta que esses autores se fazem é a seguinte: neste mundo do após-guerra tão conturbado, quem somos? Vem, a seguir, a plêiade de escritores que acompanha a Semana de Arte Moderna, que busca decodificar o Brasil do século 20, a fim de fazê-lo encontrar os caminhos da modernidade. Oliveira Vianna firma o método monográfico no estudo da nossa realidade, enquanto Gilberto Freyre parte para uma visão holística da sociedade rural brasileira em Casa-Grande e Senzala, que complementa com uma obra posterior, Sobrados e Mucambos, em que aborda a sociedade urbana. São eles autores muito originais, que criaram os tipos ideais da nossa sociologia. Como não lembrar, por exemplo, uma tipologia tão brasileira como o "complexo de clã", de Oliveira Vianna?

Como o senhor pensa e entende o Brasil? Qual a sua visão de mundo do Brasil?

Difícil dar uma resposta sucinta a essa pergunta. Talvez poderíamos perguntar: qual seria o problema que hoje afeta mais ao nosso projeto democrático? Aí eu responderia com Oliveira Vianna: o nosso complexo de clã. No Brasil, o patotismo sufocou o patriotismo. Temos mentalidade de torcida. A Cabeça do Brasileiro (para citar a obra de um jovem pesquisador na área da antropologia, Alberto Carlos de Almeida) está voltada para os seus interesses familísticos. Ruim? Não. O problema é que as pessoas, neste país, só pensam nisso, excluindo a dimensão comunitária. O que o brasileiro não pode privatizar, levando para a sua casa, depreda: orelhão, ônibus, banco da pracinha... Precisamos mudar essa cabeça, mediante a educação para a cidadania e a formação humanística, que devem acontecer, a primeira, nas quatro primeiras séries do primeiro grau e, a segunda, no ensino secundário e na Universidade. O Brasil, no contexto dos BRICs (os emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China) é o que está mais atrasado em matéria de educação para a cidadania. Entra governo, sai governo e o panorama é sempre o mesmo: descaso para com a dimensão cultural da educação básica. Não seremos nada no mundo globalizado de hoje se não formarmos a cabeça dos nossos cidadãos. E isso acontece na infância e na adolescência. Depois é tratar de corrigir o que já está deformado.

O brasileiro se interessa em pensar o Brasil?

Sou o primeiro mestre formado em pensamento brasileiro, em 1974. Também sou o primeiro doutor formado em pensamento luso-brasileiro, em 1982. Os cursos em que me formei, o mestrado em Pensamento Brasileiro da PUC do Rio (que tinha sido criado em 1972), e o doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro da Universidade Gama Filho (criado em 1979) foram, ambos, fechados por pressão da Capes. Hoje, se você quiser estudar o Brasil no terreno das ideias e da história do pensamento, não tem, no país, onde estudar. Tem que ir para Portugal ou para os Estados Unidos. Os nossos burocratas do MEC não se interessam. A Capes não se interessa. Não gostam do Brasil!

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