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Sim, meu neto, houve um tempo em que cachorro era chamado de cão.

Digamos que eram cachorros com mais dignidade, aqueles que ainda tinham um resto de rusticidade campeira, filhos de cães que pastoreavam ovelhas, vigiavam rebanhos. Acompanhavam tropas.

Não, não eram tropas de soldados, eram tropas de tropeiros, cavaleiros viajantes que, aliás, não viajavam em cavalos mas em mulas; sei que é complicado explicar isso para quem só conhece cavalo-vapor.

De dia os cães acompanhavam as tropas, trotando dezenas de milhas, e à noite velavam pelo sono dos tropeiros, alertando contra ladrões e malfeitores.

Eram cães parecidos com os cachorros de cidade que você conhece, mas bem diferentes na garra e na alma.

Sim, meu neto, se cachorro não tivesse alma, você acha que olhava a gente assim com esse olhar humano?

Veja que mesmo o mais escorraçado e magrelo e fedido e sarnento cachorro de rua, se você chama com voz boa e acaricia, te dá esse olhar irmão, de quem sabe e gosta de receber e dar carinho.

Cachorro é ser intermediário, entre bicho e gente, tanto que consegue cavoucar como seus ancestrais e gosta de passear como nós. Não precisa mais caçar porque lhe damos comida, mas conserva o gosto das ancestrais rondas de caça, adora passear.

Eu já sabia que entendiam nossa linguagem, pelos tons de nossa voz. E também andava encafifado porque nem é preciso falar em dar banho, basta pensar nisso, e eles já somem pela chácara. Para aplicar uma pomada, por exemplo, escondo no bolso, mas que! Eles me olham de viés e já vão se esconder. Eu pensava mas que coisa, parece que leem pensamento. Pois sim: agora descobri que cachorros são telepatas.

O livro A Sensação de Estar Sendo Observado trata de premonições, pressentimentos, hipnose, sexto ou sétimo sentido, telepatia e outras capacidades da chamada mente expandida. E o autor Rupert Sheldrake relata centenas de casos e dezenas de experiências científicas atestando telepatia dos cães com seus donos.

Na experiência mais interessante, o dono fica na parte superior da casa, o cachorro trancado no porão, sem qualquer contato visual ou auditivo, cada um filmado por uma câmera com relógios sincronizados. Várias vezes no mesmo dia, o cientista que supervisiona a experiência sinaliza para a pessoa pensar em levar o cão para passear, e lá no porão, no mesmo minuto, o cão vai para a porta e começa a abanar o rabo...

São seres especiais, meu neto. Num samba, Ataulfo Alves cantou: "A um amigo dei almoço/ Dividi meu capital/ Ao cachorro dei um osso/ Lá no fundo do quintal/ E no fim quem foi ingrato/ Não foi o cachorro não/ Quanto mais conheço o homem/ Mais eu gosto do meu cão".

Até por isso, não gosto de me dizer "dono" de cachorro. Não "temos" cachorros, convivemos com ele, são companheiros de vida.

Voltemos aos cães: eram do campo, como os cachorros eram e são dos quintais e das ruas. Já os pets são de apartamento. Como as crianças, que pensam que melancia dá numa árvore enorme e cenouras, porque no supermercado vêm amarradas, dão em cachos que nem bananas.

Vi num jornal fotos de cães com roupas chiques, até coletes e botas. Nenhum tinha olhar alegre, todos confinados nas suas roupas. Como as menininhas que as mães enfeitam como pequenas bonecas, para ficarem quietinhas adornando o ambiente.

Seja cachorrinho brincalhão, meu neto! Corra atrás do vento! Pule as cercas! Não se perca com fantasias, seja moleque! E pode contar sempre com este velho cachorrão!

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