Na Solidão dos Campos de Algodão: o ator Gustavo Vaz, maltrapilho, entre duas gangorras| Foto: Cristine Rochol/Divulgação

Porto Alegre - Há espetáculos em que a ambientação exerce tanto poder sobre as sensações do espectador, que não resta senão começar a falar deles por ela. É o caso de Na Solidão dos Campos de Algodão, segunda peça dirigida pelo ator Caco Ciocler, apresentada no 17.º Porto Alegre em Cena.

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Os movimentos vertiginosos do texto do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès (1948-1989) se traduzem em cinco imensas gangorras de madeira bruta, sobre as quais os atores, em pé, vão ao alto e ao chão, com riscos reais de queda. A relação física deles com o espaço (criado por Bia Junqueira) é tão crucial, que em determinado instante, um desiste de passar de uma plataforma à outra, prevendo o risco de ser esmagado no meio do caminho.

Quando estreou no Rio de Janeiro, a montagem acontecia ao ar livre. No festival gaúcho que prossegue até o próximo fim de semana, foi adaptada a um grande galpão, com piso coberto por terra e pedras (potencial artilharia) e portões de ferro que se abrem produzindo efeitos de luz e ruídos. O público, nas arquibancadas, é sugado para aquela realidade suspensa e radical.

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Sob a penumbra, surgem os dois sujeitos do confronto (os bons atores Armando Babaioff e Gustavo Vaz) e a iluminação projeta suas sombras nas paredes. Um interrompe o percurso do outro, se oferecendo a dar forma e peso aos seus desejos. A negociação avança e recua debaixo de uma sensação constante de ameaça, sem precisar onde estão ou quem são eles, talvez comprador e vendedor, talvez caçador e caça.

Um comércio das relações hu­­ma­­nas. Koltès se interessa pelos desejos, pela desconfiança, a crueldade e a injustiça que as regulam. Seus dois personagens vêm de "alturas" diferentes, metáfora para a desigualdade social, vertida literalmente na movimentação em cena. Em cima – diz o caçado ou comprador – há ordem. Embaixo repousa o que foi rejeitado do alto. Sobre as gangorras, eles se movem de um patamar ao outro de poder.

Àquele personagem que representa uma postura pública de correção e contenção, a interpretação do ator dá um registro grave e tenso. O tom do outro, representante do ilícito e desmedido, oscila mais, até o escárnio. Distintos por suas vestimentas, que são a camada socialmente fabricada da identidade, esses dois homens se igualam na matéria humana perecível: os cabelos castanhos e as barbas vastas mantidas pelos atores os fazem naturalmente pouco distinguíveis entre si. O que os aproxima, diz Koltés, é a "ausência de raridade". Condição comum a todos nós.

Na Solidão dos Campos de Algodão seria boa escolha para o Festival de Curitiba 2011, se outro produtor não se animasse de trazer a montagem antes à cidade.

*A repórter viajou a convite do Porto Alegre em Cena.

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