O protagonista é interpretado pelo professor de cinema Jean-Claude Bernardet.| Foto: /Divulgação

Um homem velho, chamado uma única vez de Joaquim (e assim o chamaremos), anda pelas ruas de São Paulo com um carrinho de supermercados cheio de trapos. Uma câmera o persegue, flutuante como a de Alexander Sokurov em “Arca Russa”.

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Eis uma parte do que acontece em “Fome”, novo longa de Cristiano Burlan (de “Mataram Meu Irmão”).

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Após alguns minutos, vemos uma moça entrevistando outros moradores de rua. Entre eles Joaquim, que, para sua surpresa, fala francês perfeitamente. Joaquim é interpretado pelo professor de cinema e pensador Jean-Claude Bernardet (mais uma vez experimentando seu lado ator).

A operação é simples: desmontar nossos preconceitos e nossa percepção do que pode ser ficção ou documentário. Em outras palavras: trata-se de um filme crítico.

Existem duas cenas problemáticas. Uma delas mostra um casal burguês levando restos do jantar de um restaurante caro para Joaquim. O homem o acorda com os pés.

Essa cena inicialmente se enquadra em um certo oportunismo social (oh, burgueses cruéis), mas se justifica parcialmente por deixar ainda mais clara a altivez do personagem, revoltado, com razão, por ter sido acordado daquele jeito. Joaquim é miserável e faminto, mas tem orgulho próprio. Foi para as ruas porque quis, por preferir a liberdade à hipocrisia.

Outra cena problemática é o encontro com um aluno universitário, que reconheceu em Joaquim o seu antigo professor e o humilha, de maneira arrogante.

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Novamente temos uma justificativa parcial: o ambiente universitário, segundo o filme parece defender, é em grande parte viciado, pois envolve professores e pesquisadores em uma engrenagem cruel de produtividade semelhante a de uma fábrica (no caso, de artigos que poucos irão ler).

Contraponto

Essas duas cenas recebem um contraponto preciso mais adiante. A aluna que entrevistou Joaquim questiona seus próprios procedimentos e a orientação de seu professor de maneira contundente, e com isso coloca na berlinda todos que se apoiam na representação dos desfavorecidos.

A moça também coloca “Fome” na berlinda. Porque é uma estratégia estética fácil, e cruel, utilizar artisticamente a fotogenia da pobreza.

A autocrítica é um dos motores da arte. Ao inserir essa cena, Burlan não está apenas cutucando acadêmicos e documentaristas, mas questionando os caminhos de seu próprio trabalho.

E assim fez seu filme mais ambicioso e maduro.

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Confira o trailer: