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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Não sou daqueles que vivem com a casa atulhada porque não conseguem se livrar das coisas, sem falar naqueles que vivem com a casa tão atulhada que parece destinada apenas às tranqueiras. Mas como me dói separar de certas coisas! Dalva, ao contrário, adora um bota-fora:

– Aquela mesa velha e toda riscada com os pés bambos? Botei na rua.

Corro para a rua, nem que seja só para me despedir de minha velha mesa, que foi mesa de copa na casa da mãe quando ela se separou do pai, foi mesa de estudo no meu quarto de colegial, mesa onde aos catorze botei a primeira máquina de escrever. E depois, lixada e envernizada, foi mesa de cozinha em minha primeira casa de casado, depois promovida a mesa de trocar nenê, três nenês, meus filhos que decerto nem lembrarão da mesa como eu também até tinha me esquecido, e de repente...

Nada na calçada, levaram minha mesa. A mesa. Aquela mesa. Adeus, mesa. Dói, mesa.

Volto para casa com a mesa nos ombros, para me ver falando diante de Dalva, com sofrida calma represando a raiva:

– Porque você botou fora aquela mesa que...

– ...não servia mais para nada? – ela fulmina sorrindo – Fazia anos ela empoeirava lá no porão esperando o que? O caixão de alguém? Velório não é mais em casa!

A lâmina da lógica, embebida em sorrisos, fura o balão da raiva; consigo gaguejar que talvez a mesa ainda pudesse ter uma sobrevida no orquidário. Dalva me pega o queixo com mãos de beijo para dizer com olhar de mulherãe, mulher e mãe:

– No orquidário ela me derrubou quatro orquídeas no dia em que quebrou duas pernas, lembra?

– Claro! – defendo minha mesa – Lembro que ouvimos barulheira do Pingo caçando à noite lá no paiolzinho, e no outro dia os pés da mesa estavam quebrados, mas que culpa tinha ela disso?

– Do-min-gos – Dalva infla a palavra de que meu ego mais gosta – Não é questão de culpa, não estou acusando a mesa de nada, só não precisamos guardar tudo que passa pela nossa vida! Já pegaram a mesa lá na rua, né? Então: nossa heroica mesa, que aqui não servia mais pra nada, vai servir a alguém que precisa!... Você não tem foto dela?

Me vejo fuçando nas caixas de fotos, anteriores a celulares e câmeras digitais, e encontro a velha mesa, embora sempre coberta, em fotos de aniversários das crianças, primeiro como mesa do bolo, depois como mesa de doces lá no fundo, finalmente mesa para bolsas na varanda em dias de festa, foto curiosa e reveladora, pensando que fotografava as bolsas, eu transfocava a mesa.

– Aquela mesa foi testemunha da história familiar.

– Escreve um livro pra ela!

Chego até a pensar no assunto. Depois, no escuro da cama, falo suspirando sofrida superação:

– Enfim, foi-se. Mas eu tinha uma relação afetiva antiga com aquela mesa.

Dalva sussurra:

– Vocês chegaram a transar?

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