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Até para a família não pensar que desprezei o morto, conforme o costume fui à beira do caixão e contemplei sua face.

O morto estava horizontalmente morto. Quietamente morto. Cerosamente morto, com a cor de parafina velha dos mortos.

Mas sorria. Sim, o morto sorria. Não o sorriso aberto dos vivos, mas um sorriso sutil, talvez até irônico, como se levemente debochando daquilo tudo, as caras compungidas, as conversas em surdina, tantas flores murchando, as assinaturas comparecendo no livro de presença.

Dos presentes ali, só o morto estava ausente, mas por causa dele todos ali estavam – seria por isso o sorriso?

A viúva conversava com outra viúva, com gestos tão vivos que se traduziam: o que fazer depois do enterro, papelada a providenciar, cuidado com os cartões de crédito, podem ser um alívio, desde que se tenha a senha, ou um transtorno de anos na mão da Justiça e dos bancos!

Eu interpretava seus gestos, quando um dos filhos me perguntou: eu conhecia seu pai daonde?

Ah, contei, de muito tempo atrás, fomos colegas de escola.

Ele sorriu como o morto sorria em vida, e me abraçou, sussurrando que o pai decerto estava feliz de me ver ali.

Seria por isso que o morto sorria? Por rever velhos colegas, reunir na morte os amigos que a vida não reunia? Então vi, num canto, a primeira namorada do morto, nossa colega de colégio, agora senhora com seus decoros. Trocamos olhar, onde vi uma chispa adolescente, e fui até ela.

Logo rimos dos tempos de colégio, relatamos a vida em poucas palavras, e enfim passamos para as confidências. O morto parecia sorrir, não? Sim, ela concordou:

– E deve ser por estar contente comigo.

Claro que perguntei porque, ela suspirou:

– Ah, porque tive coragem de vir.

Suspirou de novo, olhou para os lados e enfim sussurrou:

– Não fui apenas a primeira namorada dele, fui também sua melhor amiga a vida toda...

Fiquei sem palavras, mas ela continuou:

– A gente se encontrava só pra falar da vida, só isso mesmo. Ele dizia que ela e eles (lançou olhar para a viúva e seus filhos) nunca iam entender. Então a gente manteve nossa "amizedo", como ele dizia, nossa amizade em segredo, quase meio século!...

Choramingou no lenço, olhou em volta e continuou:

– Era tão bom! Cada um era confidente e conselheiro do outro. Ele dizia que preferia me pagar jantar em motel do que pagar psicanalista! E...

Chegou um paletó bem engravatado, ela apresentou, era seu marido, e fomos para o enterro. A certa altura, depois que o caixão baixou e o marido estava distraído, ela sussurrou:

– Era só amizade, viu? Motel era só por discrição, ou, como ele dizia, necessidade estrita de puro sigilo.

Era bem o estilo do morto, "necessidade estrita de puro sigilo". Certa vez, acendendo a churrasqueira, ele mostrou um punhado de gravetos, dizendo que eram "apetrechos indispensáveis para alcançar rapidamente o fim almejado".

Ela sussurrou: – E tudo fique entre nós!

Só balancei a cabeça concordando, claro.

Afinal, se não podia contar aquilo nem para outros amigos, ao menos eu sabia porque o morto sorria.

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