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Quando uma chuva continuada ameaça me deixar entediado, não deixo: olho em volta para enxergar ou lembrar dos prodígios que nos rodeiam.

O grilo salta dezenas de vezes a altura do próprio corpo. Se um humano conseguisse saltar como o grilo, nosso recorde olímpico estaria acima dos cem metros.

Olho lá longe o horizonte e só vejo uma linha difusa entre céu e terra. Fosse uma águia, veria até o olho do bezerro que poderia matar minha fome.

O cachorro chacoalha o rabo quando lhe encho a vasilha, e não é por causa da comida: é porque fareja nela o cheiro de minhas mãos.

A formiga passa carregando um pedaço de folha mais pesado que seu próprio corpo, tão descontraída que pára para conversar com outras no caminho.

Passam cinco patos no céu, grasnando tanto que parecem quinhentos, comunicando a todo o vale que estão vivos e voando!

Anteontem o pé de framboeza estava cheio de framboezas verdes, agora estão maduramente roxas, ao lado de outras ainda em flor, com abelhas zunindo em redor: é uma festa!

As hortências se abriram como repolhos coloridos.

Sobe a noite (é, a noite só cai para os pessimistas) e as estrelas começam a piscar, algumas mortas há milhões de anos, mas tão longe que sua luz ainda continua a chegar aqui, viajando à velocidade de quase 300 mil quilômetros por hora!

Enquanto isso, o planeta continua a girar 465 metros a cada segundo, e não sinto nenhuma tonteira...

Ao mesmo tempo, uma cadeia de montanhas cresce no meio do Atlântico, dez centímetros por ano. Suas cristas já afloraram, formando ilhotas rochosas que continuam a crescer.

Também dez centímetros por ano a América do Sul continua a se afastar da África, movimento que os dois continentes começaram há uns 135 milhões de anos, tanto que é só multiplicar 10 centímetros por 135 milhões e temos a distância média entre as costas africana e brasileira.

Mais prodigioso é que tem gente que não só consegue medir isso como, também, consegue provar que fez as contas certas.

Mas tudo isso é pouco, comparando com meu neto, que engatinhava há três semanas, uma semana depois começou a andar, semana passada já não tropeçava mais e agora está correndo!

Que dizer então de Mané Garrincha, que parecia meio abobado mas, depois de cada treino, pagava dois guris para ficarem botando bola para ele bater escanteio, até se tornar tão bom nisso que marcou sete gols olímpicos registrados pela Fifa, fora os não registrados. Dois dos gols foram num mesmo jogo aproveitando o vento.

É, tenho também o mundo da memória!

Posso lembrar de meus ídolos, para me fortalecer. Posso lembrar momentos felizes, para me consolar. Posso aprender lembrando momentos difíceis. Posso lembrar até bobagens, para rir.

E, além do mundo da memória, tenho o mundo muito maior da imaginação!

Posso imaginar desde consoladoras utopias até fascinantes delírios!

Posso imaginar um mundo em que todos trabalhem só no que gostem e portanto gostem de trabalhar.

Posso imaginar um tempo em que festejaremos um presidente não apenas negro, dona Marta, mas também gay e solteiro.

Posso imaginar cidades desinchando e voltando a ser ambientes gostosos de viver, o povo voltando a morar no campo, deixando de comprar alimentos embalados, o lixo diminuindo, os rios voltando a ter peixes e pessoas desconhecidas voltando a se cumprimentar nas ruas e estradas.

Com arte, posso ter ainda o mundo da beleza e das emoções, juntando observação, conhecimento, memória e imaginação, como acabo de fazer nesta crônica. Num mundo assim prodigioso, tédio por quê?

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