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Romance

Das Paredes, Meu Amor, os Escravos Nos ContemplamMarcelo Ferroni. Companhia das Letras, 272 págs., R$ 42.

A ficção tem a estrutura de um crime de quarto fechado, em que um personagem é morto em um cômodo trancado por dentro. Podemos levantar todas as hipóteses a respeito do nascimento de uma narrativa, mas o essencial sempre escapa e tem, até, um aspecto incoerente. Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam, segundo romance de Marcelo Ferroni (Companhia das Letras), guarda a disposição clássica de um romance policial. Há um crime de quarto fechado — em que a morte parece, em princípio, improvável e incongruente. Tudo se passa em meio à atmosfera lúgubre de uma fazenda, a dos Damasceno, cheia de histórias de ascensão e poder, de conflitos, de violência e também de fantasmas. O emaranhado de personagens acelera, mas dispersa nossa atenção, de modo que, quanto mais avançamos na leitura, nossas certezas diminuem.

A estrutura — a mesa — está posta. Sufocado pela longa tradição do romance policial, o leitor não teria muito a esperar. Mas é justamente aqui que ele se engana. Quanto mais ele acredita que sabe, menos sabe. Quanto mais pensa em dominar a história que lê, menos a domina. Quanto mais convicções forma, mais elas se esfarelam. Há uma constante frustração — que faz a narrativa andar e nos envolver — muito semelhante à do protagonista, Humberto Mariconda, um escritor fracassado. Autor de A Porrada na Boca Risonha e Outros Contos, ele vê seu livro envolvido em um grande silêncio. Não há repercussão — embora diariamente ele vasculhe os jornais em busca da crítica salvadora. Nada acontece — é como se o livro não existisse.

Quando pediam a Tolstói que falasse de seus livros, ele tinha uma resposta mortal: pedia que os lessem. Esta lembrança do narrador é bastante útil. É, de fato, muito difícil dizer o que é um livro, ainda mais quando ele tem a estrutura de um mistério. O risco da traição é grande. As possibilidades de estragar o prazer do leitor, imensas. Começo, então, falando não do livro que tenho nas mãos — o de Ferroni — mas do livro que há dentro desse livro — o de Humberto. Foi escrito com um forte sentimento de raiva. À intensidade dos sentimentos, porém, não corresponde a recepção dos leitores. O livro de Humberto parece mais um delírio pessoal do que uma obra. O que justifica a epígrafe de Vladimir Nabokov à entrada do romance de Ferroni: "Como costuma ocorrer comigo em momentos de muita atividade elétrica na atmosfera e de raios crepitantes, tive alucinações". Mas o livro não é uma alucinação, é um fracasso mesmo. Assemelha-se à quitinete em que seu autor vive, e na qual acorda "com o sol e a enxaqueca ardendo nos olhos", depois de uma noitada amorosa.

Assim, em uma noite ambígua, ele conhece Julia Damasceno, a mulher que o convida para uma aventura: visitar a fazenda centenária de sua família. "Concordei imediatamente quando ela me propôs uma viagem", relata. "Não tinha como saber, naquele momento, que ela me levava a um crime, a uma entrevista com mortos, a um duelo". Nessa fala, Ferroni antecipa o máximo que pode a respeito do livro que temos nas mãos. A partir daqui, grudados aos passos de Humberto, a aventura fica por nossa conta. O protagonista continua incomodado com o fracasso de seu próprio livro, que é uma espécie de contraponto à empatia crescente que o romance de Ferroni nos provoca. Humberto sofre: "No dia em que deixei de vê-lo exposto na livraria que frequentava, reclamei de forma amarga com o editor".

Não é o caso da aventura que ele mesmo vive. Na fazenda dos Damasceno, envolve-se em um longo passado que remonta à escravidão. A história da família se sintetiza na figura do atual patriarca, "que me fitou com olhos de fogo onde espectros gritavam". A sucessão de personagens serve, antes de tudo, para embaçar a visão do leitor, que se sente a toda hora desviado de sua rota. Neste ambiente turvo, como o exemplar de A Porrada na Boca Risonha que levara consigo, Humberto se sente desalojado. Até que os hóspedes enfrentam uma tempestade, em que as figuras se embaralham e nossa visibilidade diminui mais ainda. "A saleta inteira balançava. Ouvi batidas sequenciais no teto e pensei arrepiado no tamanho da criatura peluda que se movia no forro". A lenda de escravos enterrados nas paredes — um artifício do proprietário anterior para fugir da pena pelo tráfico ilegal — torna tudo mais difícil. "É só uma história de fantasmas", explicam, mas nada parece muito seguro. "É um absurdo ficarmos reféns da natureza", alguém pondera. Mas não é só a natureza, ou a superstição que o envolve naquela noite: são os próprios mecanismos da ficção, essa máquina incansável, sempre a marchar, sempre a ranger e a produzir seus mistérios, que salta do livro de Humberto para uma segunda ficção.

Um garoto, Carlos, namorado da restauradora do casarão, aparece de repente e, com sua juventude, sacode os alicerces. Na outra ponta da cronologia, o velho Damasceno sobrevive às doenças e surpreende seu médico. O garoto será um personagem central a partir do momento em que um crime parte ao meio o relato de Ferroni. Um crime de quarto fechado, improvável, com evidências insuficientes, mas dramático — e que há que se desvendar. Os bons romances policiais, como este Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam, se baseiam não só na intriga impecável, mas, talvez mais ainda, em uma atmosfera cerrada, que a torne não só verossímil, mas assustadora. Marcelo Ferroni é um eficiente construtor de atmosferas, que manobra com lentidão — para que nos deem nos nervos — e com tensão ascendente.

Seu romance mostra que não é só o enredo bem engendrado que define a qualidade literária. Há um segredo de quarto fechado no interior de cada narrativa, que envolve o controle do ritmo, a capacidade de construir personagens convincentes e, sobretudo, a construção de atmosferas densas, que nos encubram, provocando uma ilusão de verdade. A literatura não é verdadeira porque diz a verdade, mas porque a simula. Porque a constrói — denunciando, enfim, que toda verdade é sempre uma construção a que nós humanos, desvalidos, nos agarramos para seguir em frente.

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